IRMÃ COTOVIA
I
Vive rente ao solo e é no solo
que faz o ninho e sacia a fome
com as coisas do chão e em silêncio.
Porém, quando precisa de cantar,
muda de elemento: deixa a terra, sobe ao ar,
altíssimo, até onde
nenhum outro pássaro se arrisca.
Dir-se-ia
que sobe a um palco.
Então, dos limites do voo, quase imóvel,
vai derramando breves, repetidos
jorros de júbilo, assim como quem diz:
vejam como estou alto, sustentada
por tão frágeis asas.
Depois que desafogou o peito
das inadiáveis premências da voz,
apeia-se, torna ao solo,
dissimula-se na cor parda da terra,
como se nunca tivesse voado.
A.M. Pires Cabral, in Arado
o meu carteiro, adoro-o
se me traz facturas saldos bancários
zero na conta a ordem
menos que zero na conta a prazo
poupanças nada e
crédito disparando
faz várias perninhas ali mesmo
no átrio em cima do tapete
desculpando-se com habilidades várias
de modo que eu
ansiosa pelo seu toque
visto-me como quem não quer, mas quero
e peço-lhe mordiscando-lhe a orelha: por obséquio
mais papelada amanhã
dessa que me agiganta até
transformar-me em nada
onde nos desencontraremos
Bénédicte Houart, in aluimentos
Imprensa sobre os livros anteriores:
Esta poesia, simultaneamente subtil e rude, cumprirá a sua estrada de Damasco, incompreendida por certa crítica fascinada por fogachos formalistas, que é o que aí mais se vê.
Torcato Sepúlveda, Público, 19/11/05
“Enquanto poeta, gosta de se colocar no lugar da observadora… Fala de morte como um velho, do sexo como uma prostituta, das mulheres como um homem”.
“E trabalha de várias formas a mesma frase… à procura da palavra exacta mesmo quando essa palavra é a morte, o fim de todas as possibilidades. E esse é um tema recorrente na sua poesia. A morte e as mulheres ou a mulher, no singular.”
Isabel Lucas, Diário das Notícias, Sábado 8 de Março de 2008.
“Na poesia portuguesa contemporânea… o primeiro livro de Bénédicte, ReconhecimentoVida: Variações, que acaba de sair na Cotovia, confirma essa autonomia desassombrada, nos desequilíbrios como nas asperezas,”
Alexandra Lucas Coelho, Ípsilon, Sexta-feira 04 de Abril de 2008. (Angelus Novus / Cotovia, 2005), foi uma descoberta desconcertante. Não tinha pares muito evidentes.
http://www.livroscotovia.pt/
X
A sinceridade dessa gata,
de um tigrado quase infinito,
delicada como alegre jogo
de crianças adormecidas,
lembra-me, à tarde,
quando ouço pianistas,
uma única varanda
e uma única janela.
Como solstícios de inferno
o repuxo abre-se em luz.
Tomara o canto fosse nosso
sem searas e sem ciprestes.
Pedro Braga Falcão, in Do Princípio
Pedro Braga Falcão nasceu em 1981. Mestre em Estudos Clássicos (Literatura Latina) pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica e licenciado pela Escola Superior de Música, de Lisboa. É professor na Universidade Católica de Lîsboa e instrumentista (Viola de Arco) na Orquestra de Câmara Portuguesa. Traduziu recentemente as Odes de Horácio (Cotovia, 2008). Do Princípio é o primeiro livro de poesia que o autor publica.
imprensa sobre o autor:
"[...] Por exemplo, a Cotovia tem feito um trabalho notável, há pouco publicaram as Odes de Horácio. Não sei quantas pessoas compraram. E a tradução é boa. É feita por um rapaz muito novo que eu não conheço, terá 28 ou 29 anos, certamente será muito melhor daqui a vinte anos, mas a tradução já é muito boa."
António Lobo Antunes, em entrevista em exclusivo para o site: http://www.ala.nletras.com/
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