Dostoiévski-trip
Vladímir Sorókin
Dostoiévski-trip é uma
excelente introdução ao universo de Vladímir Sorókin, um dos nomes mais importantes - e radicais - da
literatura russa contemporânea. Na peça, um grupo de sete junkies aguarda a chegada de um
traficante com os últimos "lançamentos" do mercado. No caso, as drogas
correspondem aos grandes (e às vezes médios) autores da prosa mundial. Ao
ingerirem uma dose de Dostoiévski, os personagens são
transportados para uma famosa cena do romance O idiota, à qual se segue uma impressionante bad-trip final - lírica, visceral e catártica.
Sorókin é um dos autores confirmados para a Flip 2014.
Em um lugar indefinido, cinco homens e duas mulheres aguardam ansiosos a chegada de um incerto vendedor. Enquanto isso,
conversam, discutem e até brigam acerca de grandes
nomes da literatura mundial (Kafka, Púchkin, Céline...) e seus supostos efeitos nos
leitores-consumidores.
Não se trata, porém, de uma tertúlia amistosa
entre amantes das letras, e sim de um bando de junkies que mal se conhecem,
unidos apenas pela condição de viciados em literatura, todos ávidos pela
próxima dose.
Nesta peça em um ato, que se lê como um romance ou novela curta, Vladímir Sorókin, um dos nomes
mais importantes - e radicais - da literatura russa atual, lança personagens e
leitores em uma jornada tensa
e intensa pelo universo de Dostoiévski, de seus
dilemas filosóficos e existenciais, que ele aprofunda, potencializa, transcende
e transporta para as formas do mundo e da literatura contemporânea.
Lírico e pornográfico, escatológico e sublime, divertido e
visceral, Dostoiévski-trip
bate forte e tem efeito prolongado. Mas aqui não há lugar para cautela ou
moderação.
Boa viagem.
Sobre o autor_ Vladímir Sorókin
nasceu em 1955, na cidade de Bykovo, perto de Moscou,
e em 1977 graduou-se como engenheiro. Ainda nos anos 1970 participou de
diversas exposições de arte e trabalhou como desenhista e ilustrador. Sua
atividade como escritor se desenvolveu no mundo moscovita underground da década de 1980, e em 1985 seu romance A fila foi publicado na França. Os
textos de Sorókin foram banidos durante o regime
soviético, e somente em 1992 foi lançada em seu país uma edição de seus Contos escolhidos. Nas últimas décadas,
escreveu, além de peças, como Dostoiévski-trip (1997), vários romances, entre eles O dia do oprítchnik
(2006) e a trilogia Gelo (2002), O caminho de Bro
(2004) e 23000 (2005). Manteve sempre
um tom crítico em relação ao atual regime político da Rússia, e seus livros
estão hoje traduzidos para mais de vinte idiomas.
Sobre a tradutora_ Arlete
Cavaliere, nascida em São Paulo, é professora titular de Teatro, Arte e Cultura
Russa no curso de Graduação e Pós-Graduação no Departamento de Letras Orientais
da FFLCH-USP, e coordenadora da área de Língua e Literatura Russa no mesmo
departamento. Dentre seus livros, destacam-se: O nariz & A terrível vingança (de N. V. Gógol)
- A magia das máscaras (Edusp, 1990, tradução e ensaio); O inspetor geral de Gógol/Meyerhold: um espetáculo síntese (Perspectiva, 1996); Ivánov, de A. P.
Tchekhov (Edusp, 1998, cotradutora), Teatro russo: percurso para um estudo da
paródia e do grotesco (Humanitas, 2009), Nikolai Gógol:
teatro completo (Editora 34, 2009, organização e tradução) e O mistério-bufo, de Vladímir
Maiakóvski (Editora 34,
2012, tradução).
Texto de orelha_
por Bruno Barretto Gomide
Sete personagens desprovidos de nomes e em busca de um autor se
reúnem em um "lugar" inespecífico. O autor, no caso, será trazido por um
traficante, cuja maleta contém uma plêiade de escritores em forma de pílulas.
Diante das possibilidades entorpecentes da tradição literária universal
acondicionada em frascos, os ansiosos usuários discutem o preço caríssimo de Nabókov, as qualidades de Kharms
("com ele, tudo cai bem"), o baixo-astral causado por Górki
("uma merda"), o barato dado por Faulkner e a relação custo-benefício de Chólokhov, Soljenítsin e Platónov, até se decidirem por uma sugestão do vendedor. A
bola da vez é ninguém menos do que Fiódor Dostoiévski, cuja ingestão transfigurará a experiência dos
personagens, retirando-os daquele não-lugar e
catapultando-os para um cenário arquirrusso, uma das
cenas de escândalo quintessenciais de Dostoiévski: a passagem profundamente teatral de O idiota em que eles, agora encarnados
em Gânia, Nastácia Filípovna,
Rogójin e demais
personagens, travarão a sua disputa pecuniário-metafísica em torno de
cem mil rublos e uma lareira. Depois da reencenação
(intensificada) daquela passagem capital do romance russo sobrevém uma bad trip
monumental, que novamente problematiza as relações entre o texto de 1869 e o
contemporâneo. O leitor, nesse processo, é convidado a tecer aproximações e
divergências entre as propostas de Dostoiévski e de Sorókin. E se o Cristo reaparecesse na Rússia do século
XIX? À pergunta fundamental de O idiota,
o matreiro Sorókin parece apor: e se Dostoiévski reaparecesse na Rússia de 1997, ano de
publicação dessa peça viajante?
Uma Rússia em que diversos elementos do pós-modernismo são antropofagizados, confundindo-se, inevitavelmente, com o
pós-sovietismo (e com o conceito do pós-dramático, como observa, no instigante
ensaio do posfácio, a tradutora Arlete Cavaliere). Percebe-se também a marca da
"Tchernukha", a estética barra-pesada de inspiração
cinematográfica em voga quando da criação de Dostoiévski-trip e com a qual Sorókin dialoga, neste e em outros textos (além de romances
e contos, ele é autor de mais de uma dezena de peças e roteiros de cinema).
Cenas de bandidagem, prostituição, alcoolismo, violência, sexo e drogas - o
lado "negro" da perestroika e o gangsterismo da era Iéltsin representados por meio de
bofetadas verbais, pela violência da linguagem sempre latente na literatura
russa e sempre abafada pela necessidade de contornar, no czarismo e em tempos
soviéticos, censuras políticas e morais.
Longe, porém, de ser um mero jogo de cena chocante, Dostoiévski-trip
é um texto literário e dramático complexo, e desempenha um papel importante na
empreitada artística do autor. Em artigos e
entrevistas, Sorókin tem apontado as
possibilidades bastante contraditórias contidas na analogia arte/droga.
Uma dessas intervenções na imprensa, aliás, intitula-se "O texto como
narcótico", publicada lá se vão mais de vinte anos. É, portanto, um projeto
crítico permanente, de feitio radical e sofisticado, que reavalia o papel da intelligentsia e do seu rebento
predileto - a literatura russa - nos tempos atuais. "Sou um viciado em
literatura, que nem você, mas eu ainda consigo produzir as drogas, coisa que
nem todo mundo consegue", afirmou Sorókin em uma
entrevista de 2004.
Ótima oportunidade para que o leitor brasileiro aprofunde o seu conhecimento da literatura russa contemporânea,
por intermédio de um dos seus melhores expoentes.