POR EDUARDO CRUZ
De um certo modo ficou difícil contar alguma novidade acerca depois das comemorações dos 500 anos de Brasil.
Mas a história está aí , e dependendo da idade do cidadão e do livro didático do seu tempo de escola , de Capistrano de Abreu a Borges Hermida , temos muito desses 500 anos de Brasil para rever. De 1500 a 1640 , a chamada fase litorânea temos o delicioso banquete de Dom Pero Fernandes Sardinha , bispo acepipe dos Caetés em 1556. E temos Mem de Sá que mandou exterminar aquela nação inteira só por causa do regabofe. Temos a chegada dos jesuítas de dúbia história e mais à frente expulsos de Portugal e suas colônias. Temos o fracasso das capitanias hereditárias , onde já se praticava ao que parece o nepotismo desbragado e uma guerra fiscal lá a seu modo.
Mas nada disso daria uma dimensão do surgimento do verdadeiro Brasil. Aparentemente eterna referência do expansionismo capitalista por toda a América Latina . Estamos falando da fase bandeirista que em sucesso folhetinesco foi às tevês e reapresentou ao grande público os bandeirantes e as atividades e vocações do maior centro comercial e financeiro do país que é a cidade de São Paulo.
O curioso em contar-se a história dos 500 anos através dos Bandeirantes , é encontrar no presente as mesmas mazelas do passado , pagar nossa divida histórica com os índios e apresentar alguns heróis como pouco ou nada patriotas e merecedores de CPIs históricas... “sim, porque há documentos que provam “...
Na visão clássica , “partindo do litoral, os colonos foram aos poucos incorporando o território da América portuguesa ao âmbito do Império: mundo sempre em movimento onde as hierarquias sociais se superpunham com maior flexibilidade e rapidez; onde os limites geográficos foram até meados do século XVIII, fluidos e indefinidos” , escreve Laura de Mello e Souza em Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. Em sua visão , em decorrência do caminho , do movimento, constituiu-se a civilização paulista. Mas que civilização era essa aparentemente cheia de organização e desorganização , rica na ação e pobre nas posses, européia na índole , mas xenófoba na expropriação . Deixemos de conjecturas e vamos aos fatos.
Os primeiros jesuítas a desembarcarem no Brasil eram liderados pelo padre Manoel da Nóbrega e vieram dar com seus costados e sua missão “de salvar os índios” em 29 de março de 1549.Vieram com o governador geral Tomé de Souza e desde logo bateram de frente com os colonos que cá estavam. Para os colonos os “negros da terra” eram mão-de-obra indispensável, barata e servil. Para os jesuítas “alminhas a serem salvas a qualquer custo” , que lhes fossem cobertas as vergonhas , que não fornicassem com os colonos e que cultivassem para eles (jesuítas) suas terras .
O Padre José de Anchieta chegou ao Brasil em 1553 , e embora considerado um “santo” por muitos, consta de seus escritos a seguinte frase – “ Para esse gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e vara de ferro”. Conta a lenda que quando era refém dos Tamoios em Ubatuba (SP) escrevia longos poemas devocionais na areia , já que não tinha papel . A lenda persiste garantindo que era a sua forma de memoriza-los . Melhor essa explicação do que inventar um copista que diligentemente ia recuperando os textos antes da maré .
Pois bem, mas é através deles dois que temos a fundação do que veio a chamar-se São Paulo de Piratininga. Quer dizer, não é bem assim – Na história oficial consta que “a fundação de São Paulo insere-se no processo de ocupação e exploração das terras americanas pelos portugueses, a partir do século XVI. Inicialmente, os colonizadores fundaram a Vila de Santo André da Borda do Campo (1553), constantemente ameaçada pelos povos indígenas da região. Nessa época, um grupo de padres da Companhia de Jesus, da qual faziam parte José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, escalaram a serra do mar chegando ao planalto de Piratininga onde encontraram "ares frios e temperados como os de Espanha" e "uma terra mui sadia, fresca e de boas águas". Do ponto de vista da segurança, a localização topográfica de São Paulo era perfeita: situava-se numa colina alta e plana, cercada por dois rios, o Tamanduateí e o Anhangabaú. Nesse lugar, fundaram o Colégio dos Jesuítas em 25 de janeiro de 1554, ao redor do qual iniciou-se a construção das primeiras casas de taipa que dariam origem ao povoado de São Paulo de Piratininga. Em 1560, o povoado ganhou foros de Vila e pelourinho mas a distância do litoral, o isolamento comercial e o solo inadequado ao cultivo de produtos de exportação, condenou a Vila a ocupar uma posição insignificante durante séculos na América Portuguesa.
Já para Benedito Lima de Toledo professor-titular de História da Arquitetura da FAU-USP , o núcleo de São Paulo de Piratininga ao fim do século XVI era formado por um triângulo composto em seus vértices pelo Colégio dos Jesuítas, pelo Mosteiro de São Bento e pela Igreja de São Francisco( incluindo a igreja do Carmo). O formato triangular faz crer que a cidade cresceu dentro dos muros, que foram por vezes mudados para darem vez à expansão . E porque dos muros , em um lugar tão longe da costa? Os muros de taipa de pilão era para se protegerem do índio inimigo. Aquele que aprendemos nos livros ser dócil e amigo.
O mesmo que era a única fonte de sustento das 370 famílias de Piratininga, que a partir de 1571 , graças à iniciativa do capitão-mor de São Vicente, Jerônimo Leitão , puderam empreitarem-se no negócio da captura dos “negros da terra” . Na verdade São Vicente , antes de ser fundada por Martim Afonso já era conhecida como “porto de escravos” devido ao tráfico promovido por João Ramalho , e um embuçado histórico conhecido como Bacharel de Cananéia. Dizem que era um degredado. Muito citado , mas de identidade incerta e não sabida .
Em tempo, Piratininga quer dizer peixe seco em referência ais cardumes que ficavam à lama a secar depois das águas baixarem. O triângulo era dos poucos lugares desse núcleo realmente seco , pois cercado por rios que viviam em constantes alagamentos o resultado era caótico , como os que hoje chamamos de enchente e provocam 140 km de consgestionamentos.
Mas esses , que segundo alguns autores eram piratas do sertão também viam a meter-se em rusgas . Primeiro pelos índios , depois pelo ouro. E uma resistência ferrenha em seguir as regras ditadas pelo reino português. Os reinóis , eram inimigos declarados. É curioso ler em “A Muralha” de Dinah Silveira de Queiroz , a personagem , antes frágil , Basília , comportar-se como uma vingadora da família .”O ódio a excitava, tornava-a cheia de ânimo. Agora sua família estava reduzida à Mãe Cândida e a ela própria, já que Leonel era um meio-morto, um desamparado, largado de si mesmo e de Deus, solto no mundo e esquecido de sua gente. Lembrava-se das palavras de Borba Gato: ‘Os paulistas terão contra eles inimigos de assombrar’”. Isso em um romance histórico considerado até pueril por alguns críticos .
Borba Gato também é personagem em “O retrato do rei” de Ana Miranda onde fica claro que paulistas e reinóis o respeitavam . Talvez não o façam hoje ao ver a sua horrenda estátua na estrada do bairro de Santo Amaro , antiga cidade que ajudou a fundar e que foi absorvida por São Paulo. Mas no livro a autora nos trás com cores mais fortes o início do ciclo do ouro e a incrível Guerra dos Emboabas que durou três anos . Uma história cruel de cobiça e nenhuma ideologia , digamos , bandeirista.
No Rio de Janeiro , mesmo durante a missa , no sermão o tema viria a ser o ouro. Na Igreja do Carmo “embora tivessem a expressão grave e contrita, poucos tomavam seriamente o que dizia o sermonista. Quem, entre aqueles não dedicava a vida a acumular riquezas? Viviam regaladamente, nos prazeres. Engordavam seus corações em dias de matança.” Ainda no livro , Dom Fernando explica os paulistas ...”Os paulistas são selváticos, prima. Bravos, donos de uma truculenta liberdade, consideram-se diferentes dos outros moradores do país, o que não deixa de ser verdade. São rudes por fora e gentis por dentro, o contrário do que costumamos ser. Vaidosos, matam-se por uma honra ou distinção. Descobriram o ouro nos sertões, mas não sabem retirá-los das águas...”
Se eram rudes em estilo até tinham seus porquês. Alguns historiadores contam que enquanto as capitanias do norte eram servidas com seda, Fernão Cardim nos conta que os moradores sofriam por falta de navios. Em 1585 estavam por exemplo, completamente por fora da moda e ainda usavam o algodão tinto como tecido. Também como pensar em moda quando se lê por exemplo em Anchieta que “ a quarta vila na capitania de São Vicente é e Piratininga, que está 10 a 12 léguas pelo sertão e terra a dentro. Vão lá por umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhums animais e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não despenharem-se”. Menos que nos atuais congestionamentos de fim de semana é claro.
Mas quem deliciosamente nos conta um pouco dessa vila de 446 anos e por isso mesmo grande co-participante deste 500 anos de Brasil é Belmonte. Este magnífico contador de histórias e ilustrador chamava-se Benedito Carneiro Bastos Barreto e jornalista paulistano interessou-se por contar as estranhas histórias de Piratininga e foi o criador do personagem “Juca Pato” , hoje transformado em prêmio que até o presidente Fernando Henrique já recebeu...
Mas a grande obra desse caricaturista é sem dúvida a raridade bibliográfica “No tempo dos Bandeirantes que foi reeditado pelo governo do estado de São Paulo. Em sua apresentação Belmonte dizia que o livro não era propriamente, um livro de História, infalível e definitivo...Quanto aos historiadores, estou certo de que perdoarão o humorista curioso que, com tanta sem-cerimônia, mas com a melhor das intenções, lhes invadiu os domínios”.
E que bela invasão...como a dos índios Carijós , que obrigaram os moradores a fortificarem a vila que nascia ainda sem nome de ruas e praças que são apenas pateos e terreiros.”No alto da colina, encerrada dentro de um triângulo, está a vila”. Ficamos então sabendo que nela ruas sem nome, atalhos que serpenteiam barrancos, “que se despenham pelos alcantís, que vão ligar-se lá embaixo com os caminhos que levam ao Guaré, aos campos de Piratininga e de Santo Antônio, a Ibirapuera, Pinheiros, Ururaí, ao caminho do sertão e ao caminho do mar.”
Algumas ruas e seus nomes sobreviveram aos séculos – “Rua de Sào Bento para Sào francisco, rua que vai para a direita para Santo Antonio, rua que vai para a Nossa Senhora do Carmo, rua do Carmo, rua que vai para a matriz” . Mas a coisa podia ficar confusa quando era “na rua do meu irmão Fernão Pais, rua onde mora Pedro Furtado, na rua pública desta vila, rua que vai para o Anhamgabaú ( que era um rio , e que hoje vez por outra vira um), rua detrás da casa de Aleixo Jorge ( e dessa nem queremos saber de histórias). São Paulo também era conhecida como São Paulo do Campo e era pobre, pobreza essa só atenuada pelo ciclo do ouro.
“Mas os forasteiros afluem””, continua Belmonte e mesmo 1633, em meio à penúria chegam gentes “do litoral, de Santos e sào Vicente, e não poucos dp Sul, do Guaíra e do Paraguai, embora o façam pelo caminho proibido. E já no fim do século, a sua população sobe a quase 4000 almas”. Entre elas , muitos muambeiros.
Grande número de locais próximos tinham nomes indígenas , tudo parecia ficar muito longe. Os mais ricos além das suas propriedades mantinham uma casa na vila. “Morando tão longe assim , não é por ociosidade que os paulistas pouco aparecem na vila, principalmente quando é forçoso andar por caminhos fragosos.O rude bandeirante que , a todo momento, rompe a mata e vai parar no Paraguai, no Amazonas ou no perú, parece não
Ser amigo do meio têrmo. Ou vai muito longe ou não vai.”
Mas a verdade é que os “caminhos fragosos” dão nos nervos. E com tantos rios e riachos sujeitos a enchentes , os caminhos alagados as pontes arruinados , não há quem possa. Já aquele tempo , na Câmara os apelos às autoridades se repetem. “Apelos ao senhor procurador: ...requeeu que se fixassem quartéis para se fazer a ponte do guerepe...E a ponte que está debaixo desta vila chamada anhamgobaí...E que se concerte a ponte da tabatinguera...E a ponte do ribeiro anangabaú caminho de peratiningoa... “
Além dos apelos , há de se notar que muitos locais séculos depois conservam o problema , e que também os escribas não primavam pela padronização dos nomes .