Vida, Forma e Cor trata basicamente de arte e artistas — como prosadores, poetas, ensaístas, pintores, escultores, e até mesmo de um músico como Villa-Lobos —, pois foi justamente como artista da palavra que ele começou a incomodar dois tipos igualmente curiosos e antipáticos da república das letras: os que o condenavam por fazer ciência, ainda que social, utilizando uma linguagem de elevado teor artístico, e aqueles que não conseguiam vê-lo como escritor literário porque, fazendo ciência, isso viria a contrariar, seguindo-se tão tolo raciocínio, a própria índole da literatura, o que fez Gilberto Freyre observar, em um dos passos desta obra, que “segundo alguns mestres da crítica literária, nada devo pretender entender de literatura”, e confessar em outra parte: “Eu sou hoje o primeiro a afastar-me dos beletristas assim sectários, embora sem ligar-me aos sacerdotes devotos das seitas contrárias às suas: aquelas que julgam essencial a algum filósofo, tanto quanto ao bom sociólogo ou ao bom jurista ou ao bom antropólogo, escrever arrevesado e desdenhar de todas as graças da vida e da cultura”.

Este seria um belo título para um filme “cult” dos idos anos 70 . Mas
na verdade esse embate foi muito mais elitista e futriqueiro que o seu
título popular. Como sabemos , quem se auto-intitulou de “anarquista
construtivo” foi Freyre, quando se via questionado por ser o que, os
paulistas por exemplo, chamavam de “conservadorismo empedernido”. Mas,
se hoje, os nossos cientistas sociais podem ostensivamente e com
legitimidade , pesquisar sobre a questão da mulher , minorias sexuais e o
universo doméstico é graças a sua obra polêmica Casa Grande &
Senzala .
As críticas ao seu trabalho muitas vezes se atinham a
sua forte preocupação com a sexualidade ou ainda faziam recriminações à
sua visão de “uma sociedade em que predominam mecanismos de acomodação e
conciliação. Isso era demais para sociólogos da Universidade de São
Paulo (USP) , que ainda o consideravam um colecionador de objetividades
( ou de obviedades)” .
Passaram-se os anos e pouco a pouco, a
importância de sua obra , inegável, vai sendo resgatada . Volta a ser
citado e muitos até fazem até um verdadeiro “ato de contrição”. A
jornalista Rose Nogueira (criadora do extinto e revolucionário programa
TV Mulher) ressalta, por exemplo, que na obra de Gilberto Freyre fica
muito bem explicitada a função da mulher no trato das tarefas diárias em
uma fazenda . Que ela é quem verdadeiramente era “comandante-em-chefe”
dos feitores. Que essa visão da mulher no comando dos negócios acaba por
ser incorporado nas obras ficcionais e aparece emblemáticamente nas
cenas da novela televisiva Terra Nostra . Com certeza, sem Gilberto
Freyre e a inspiração de seu trabalho para outros pesquisadores, jamais
teríamos essa visão e sim, a outra oficial, de uma sociedade patriarcal
e patronal.
No prefácio de sua terceira edição de casa Grande
& Senzala, Gilberto Freyre diz receber com naturalidade as críticas
“sem se achar, entretanto, obrigado a modificar os seus pontos de
vista”. Reparos como o do Professor Coornaert, da Sorbonne, sobre o que
considera preocupação excessiva com o elemento sexual na interpretação
de alguns aspectos característicos da formação social do Brasil.
Críticas estas que obtiam ressonância nos “sorbonardes” da dita esquerda
sociológica paulista.
Em entrevista concedida em 1985 a
Benjamim e Cilene Areias, Freyre fala dessa sua relação com a
intelectualidade esquerdista. “Eu sempre fiz restrições a certos usos do
marxismo, mas não se pode apresentar nenhuma atitude antimarxista
sectária de minha parte. E fiz um grande convertido: o inteligentíssimo
Oswald de Andrade. Num de seus artigos no Correio da Manhã ele tratou de
sua conversão ao ‘pós-marxismo de Gilberto Freyre’, dizendo que não
rejeitara o que aprendera de marxismo , mas achava que isso não
satisfazia mais: Marx foi homem de uma época européia, e nós estávamos
noutra época. Ora , quem é pós-marxista não é antimarxista.”
Em
outra entrevista, anterior a essa (1980) a Ricardo Noblat, então chefe
de sucursal da Revista Veja e que foi publicada pela revista Playboy,
experiente o jornalista tentava fazer Gilberto Freyre falar sobre seus
críticos , que teimavam em não reconhecer a sua importância
internacional, esquivo acaba por falar nas desvantagens do sucesso- “ A
desvantagem é que você fica muito exposto ao chato. Essa é a desvantagem
principal, porque o chato existe e não é só brasileiro: o chato é
internacional...E você tem de se defender sem magoar aquilo que o chato
bem-intencionado representa. Porque o chato por vezes é bem-intencionado
. Ele não é chato porque quer ser : ele é chato porque é chato.” E
citava como chato o amigo Oscar Niemeyer –“que é um arquiteto genial, é
muito ignorante. É difícil você manter uma conversa interessante com
ele.(...)há pessoas que são muitíssimo mais interessantes escrevendo do
que falando”. Com tiradas como essa Gilberto Freyre atraia sobre sí não
simplesmente as críticas acadêmicas , mas também as rusgas primárias e a
ira da “inteligência da esquerda”.
E fustigando a
intelectualidade paulista também com artigos contra o modernismo. “...no
total, a Semana de Arte Moderna representou uma introdução arbitrária ,
no Brasil, de modernices européias, sobretudo francesas. Sem dúvida,
cultura brasileira em geral e as artes brasileiras em particular,
precisavam na época de serem modernizadas, revigoradas – mas levando-se
em conta a realidade regional brasileira, suas tradições características
às quais se poderia adaptar inovações européias. Isso não se fez em São
Paulo, mas sim no Recife, num movimento menos badalado, como se diria
hoje, do que a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Esse movimento foi
regionalista, tradicionalista e, a seu modo , modernista, ao qual
estiveram ligados artistas como Vicente do Rego Monteiro, um renovador
da pintura e da escultura.”
Gilberto Freyre começou a ser
conhecido em São Paulo por um outro intelectual paulista que,
coincidentemente, criticou a Semana de Arte Moderna, Monteiro Lobato
que divulgava os artigos de Freyre na Revista do Brasil .
Mas
a briga com a “escola sociológica paulista” estava longe de acabar,
seu apoio à ditadura que instalou-se após o Golpe de 64 , levou-o a
praticamente ser expurgado dos currículos da Universidade de São Paulo .
Mais tarde , Gilberto Freyre reconheceu que não era antimilitarista
mas, “devo dizer que nunca me enganei com esse surto militar iniciado em
1964, o que me levou a recusar convites do General Castello Branco para
ocupar um Ministério ou Embaixada em Paris. Os militares se deram aos
tecnocratas, que comprometeram os valores éticos do Brasil e nada
fizeram para diminuir o desprezo pelo nordeste, que já se manifestava
então no Centro-Sul. Você não pode definir o Ministro tecnocrata por
excelência, o Delfim Netto, senão como um quase patológico
antinordestino.” Como vemos sobrou até para a direita paulista.
Porém, o mais interessante vem ainda a acontecer, como todo roteiro de
filme “cult” , vilões e heróis acabam por se confundir. Na
correspondência pessoal de Gilberto Freyre encontramos uma carta datada
de 7 de Abril de 1961 , em papel timbrado da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo , assinada pelo Professor
Florestan Fernandes. Agradecia a hospitalidade recebida por ocasião de
sua passagem por Recife. Afirmava ter levado as melhores impressões do
trabalho que estava sendo realizado pelas duas instituições que Freyre
dirigia e ia além...”Agora o principal objetivo desta carta: os dois
primeiros doutoramentos da cadeira de Sociologia I, a realizar-se em
breve, de candidatos que trabalharam sob minha orientação, devem
ocorrer dentro deste semestre. Os candidatos são seus conhecidos e
admiradores : Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni. Os trabalham
versam assunto de sua principal área de estudos – a sociedade senhorial
brasileira, só que agora vista do ângulo das relações entre o senhor e o
escravo no sul do Brasil (Porto Alegre e Curitiba). Queríamos
prestar-lhe uma homenagem, que constitui ao mesmo tempo uma honra para
nós, pedindo-lhe para participar da banca examinadora”.
Pois bem, o
então futuro “príncipe dos sociólogos” e “Presidente do Brasil” poderia
ser examinado por Gilberto Freyre... Na mesma entrevista concedida a
Ricardo Noblat , Gilberto Freyre fala sobre esses três personagens –
“Dos sociólogos paulistas, o que eu considero a figura máxima é Fernando
Henrique Cardoso, que é até político militante marxista, mas há pouco,
num artigo, mostrou-se simpático às minhas atitudes, embora divergindo
de mim. Outro marxista, mas este do Rio, o antropólogo Darci Ribeiro, um
grande antropólogo, escreveu uma introdução para a edição venezuelana
de meu livro Casa Grande & Senzala , que é talvez o que de melhor já
se escreveu a respeito do ponto de vista antropológico e sociológico.
Agora, ambos são marxistas eminentes. Mas quando o marxista é um Octávio
Ianni, que não é intelectualmente honesto, a meu ver, e um outro que já
nem me lembro o nome...”Noblat se apressa em lembrar.....”Florestan
Fernandes?” E Gilberto Freyre continua- “Florestan. Que não é desonesto
mas que é um fanatizado pelo marxismo. Esses desonestos ou esses
fanáticos superiores – eu respeito o Florestan Fernandes, uma cultura
real, um talento autêntico, mas fanatizado – enfim , eu não os considero
como representantes do que há de melhor na sociologia e na antropologia
paulista . Mas, são os mais ruidosos e os mais badalados por nossa
querida imprensa”.
Quando Fernando Henrique Cardoso ainda era
Senador pelo PMDB-SP , e sabe-se lá se acalentava o sonho de ser
Presidente reeleito, publicou um artigo no Jornal O Globo de 26 de julho
de 1987 republicado dez anos depois no Diário de Pernambuco. Nele era o
sociólogo Fernando Henrique que falava e chamava Gilberto Freyre de “um
verdadeiro criador”. Talvez quisesse dizer...um verdadeiro “criador de
casos”, mas discorria que “há alguns anos –em 1973- escrevi um artigo
sobre ‘Casa Grande & Senzala’. Foi um ato de contrição. Eu lera ,
obviamente, e muitas vezes, não só ‘Casa Grande & Senzala’, mas
alguns outros livros de Gilberto Freyre. Membro da ‘escola sociológica
paulista’ que sou e interessado nas questões raciais e na escravidão (
minha tese de mestrado, em co-autoria com Octavio Ianni, e a tese de
doutorado foi sobre o ‘Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional’) ,
li Gilberto Freyre quando estudante e na época das teses universitárias
com o olhar severo do jovem que buscava o rigor científico e tinha em
Florestan Fernandes o mâitre a penser.”
E continua o sociólogo
“Pois bem, na releitura crítica percebi o pecado (venial , por certo)
que cometera. Gilberto Freyre não podia ter sido lido como um
colecionador de objetividade (ou de obviedades). Nem do ângulo
científico nem do ângulo político”. (...) “Rótulos não se sustentam
diante do verdadeiro criador, Freyre me capturou. Não por sua ‘ciência’,
mas por ter sido capaz de propor um mito-fundador.” Casa Grande &
Senzala” e o próprio Gilberto Freyre são parte constitutivas do Brasil :
falsos ou verdadeiros, a obra e o criador, pela força macunaímica que
têm, expressam o que nós somos”.
“Ás vezes não gostamos: é a
vaidade transbordante, a pequena mentira, a perspectiva ilusória. Mas
não apenas em Gilberto Freyre : tudo isso está contido na nossa cultura.
As vezes nos deliciamos: são os quitutes, é o sexo obsessivo, é o
popularesco, é o povo próximo de nós. Mas também neste caso, é mito.”
“Morto Gilberto Freyre, continua vivo o mito que ele produziu”.
Ainda bem. Pena que outros mitos não sejam tão geniais.
Eduardo Cruz é jornalista paulistano
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