Nikolai Gógol Almas mortas
Tradução, prefácio e notas de Rubens Figueiredo
Posfácio de Donald Fanger
Coleção Leste | 432 p. | 16 x 23 cm |667 g. | ISBN 978-85-7326-699-3 | R$ 79,00
Almas mortas, publicado pela primeira vez em 1842, é o livro precursor do romance clássico russo e a grande obra-prima de Nikolai Gógol (1809-1852). A narrativa traz a história de um especulador de São Petersburgo que chega a uma cidade de província e procura conquistar, com suas boas maneiras, a simpatia da sociedade e dos senhores de terras locais. Seu objetivo: comprar “almas mortas”, ou seja, servos já falecidos, mas que ainda não haviam sido declarados como tal no último censo. É em torno desse tema — que lhe teria sido sugerido por Púchkin — que Gógol tece um dos retratos mais certeiros, a um só tempo satírico e afetuoso, do povo russo. Destaca-se na obra a voz do narrador, alter ego do autor, que imediatamente nos cativa pela imaginação e irreverência de suas descrições e observaçõ es. Mesmo que pareçam escapar ao fio da meada e ao bom senso, elas acabam compondo um quadro extremamente perspicaz de um país que ainda buscava sua identidade e os caminhos para se modernizar.
Esta nova tradução, realizada por Rubens Figueiredo, tem por base a mais recente edição crítica russa, e é acompanhada de quatro textos publicados em 1847, inéditos em português, em que Gógol comenta seu processo de criação e as reações causadas pelo romance. O volume inclui ainda os rascunhos que restaram da segunda parte de Almas mortas, além de um ensaio de Donald Fanger, professor emérito da Universidade de Harvard, que analisa em detalhe a prosa exuberante do genial autor russo.
Sobre o autor
Nikolai Vassílievitch Gógol nasceu em 1809 em Sorotchíntsi, na Ucrânia. Em 1829 muda-se para Petersburgo, onde publica os poemas “Itália” e Hanz Küchelgarten, de caráter romântico. Em 1830 frequenta a Academia de Belas-Artes, dá aulas em um colégio para meninas e considera tornar-se ator. Com a ajuda de amigos consegue um cargo de professor na Universidade de São Petersburgo. Baseado em lembranças da Ucrânia, elabora os dois volumes de Serões numa granja perto de Dikanka, publicados em 1831 e 1832 e recebidos com entusiasmo pela crítica. Deixa a universidade e dedica-se integralmente à carreira de escritor, publicando em 1835 duas coletâneas de contos e novelas: Arabescos, que traz “Avenida Niévski”, “Diário de um louco” e “O retrato”; e Mírgorod, que inclui & ldquo;A briga dos dois Ivans” e o épico Tarás Bulba. Em algumas dessas obras já se dá a passagem dos temas rurais e folclóricos para os urbanos e fantásticos.
No ano seguinte publica os contos “A carruagem” e “O nariz”, além da comédia O inspetor geral, considerada um marco na história do teatro russo. Ainda em 1836 parte em viagem para o exterior, passando pela Suíça e França, e fixando residência em Roma. Se dedica então ao projeto de um ambicioso romance, Almas mortas, que seria publicado em 1842. No ano seguinte, em uma edição de suas obras completas, aparece pela primeira vez “O capote”, um dos contos mais influentes da literatura russa. A última década de sua vida é marcada por crises de depressão e um ascetismo religioso exacerbado. Adoece constantemente, e em 1847 publica Trechos selecionados da correspondência com amigos, textos ensaísticos muito criticados por seu conservadorismo. Retoma então a redação da segunda parte de Al mas mortas, iniciada ainda na década de 1840, mais queima todos os manuscritos em 1852, ano em que morre em Moscou.
Sobre o tradutor
Rubens Figueiredo nasceu em 1956. É professor de português aposentado da rede estadual do Rio de Janeiro, escritor e tradutor. Entre seus livros estão os romances Barco a seco (2001, Prêmio Jabuti), Passageiro do fim do dia (2010, Prêmio Portugal-Telecom e Prêmio São Paulo) e os livros de contos O livro dos lobos (1994-2008), As palavras secretas (1998, Prêmio Jabuti e Prêmio da Biblioteca Nacional) e Contos de Pedro (2006). Suas traduções incluem obras de Anton Tchekhov, Ivan Turguêniev, Ivan Gontcharóv, Maksim Górki, Lev Tolstói e Isaac Bábel, entre outros. Recebeu o prêmio da Biblioteca Nacional pela tradução de Ressurreição e os prêmios da Academia Brasileira de Letras e da APCA pela tradução de Guerra e paz, ambos de Tolstói.
Texto de orelha
Deixando a Rússia em 1836, Nikolai Gógol passaria doze anos no estrangeiro, onde escreveria o seu poema Almas mortas. Residindo ora na Suíça, ora em Paris, ora em Roma, continuou mantendo vasta correspondência com os amigos na Rússia, pedindo-lhes descrições de tipos e de ambientes, a fim de enriquecer a obra, mas decepcionando-se com os parcos resultados assim obtidos.
E, no entanto, os tipos que o espertalhão criado por Gógol, Tchítchikov, encontra em sua peregrinação pelo interior do país têm para os russos a vivência dos símbolos eternos, e os seus nomes já passaram até para a linguagem comum: Pliúchkin é a personificação da avareza, Manílov, da mediocridade melíflua, sentimental e autossuficiente, etc. É o livro em que Gógol pôs mais de si mesmo, e a ação se interrompe frequentemente com divagações do autor, com páginas poéticas sobre o mundo russo, a natureza humana, etc. Mas não se pode considerá-las descabidas, pois toda a estrutura da obra é assim difusa, extensa, espraia-se livre, ilimitada. Alguns críticos censuram-lhe até hoje essa estrutura, mas, na realidade, não se pode exigir do escritor intenç&otil de;es que ele não teve. Como enquadrar no gênero romance, e romance do século XIX, uma obra que o próprio autor considerou, e com muita razão, um poema? Por vezes, a ação escapa ao simples bom senso, mas justamente nisso reside um dos traços mais geniais de Gógol. Como censurá-lo por nos ter deixado esse painel magnífico, em lugar de uma fotografia?
A obra ultrapassara, porém, as intenções conscientes e declaradas do autor, o que foi apontado mesmo por críticos contemporâneos de Gógol. Este era um homem educado no respeito à tradição, ao regime autocrático, na veneração à chamada Santa Rússia. E o que ele mostrava, com a sua capacidade de captar os absurdos da realidade, era um sistema em que os camponeses, as “almas”, eram vendidos e revendidos e, mesmo depois de mortos, continuavam sendo objeto de comércio. E a sua Santa Rússia, embora a apresentasse num trecho famoso como uma troica em vertiginosa corrida, tinha os velhos caminhos lamacentos, com casinhas acachapadas, em que viviam seres mergulhados na mediocridade provinciana.
Publicada em 1842 a primeira parte do seu vasto poema, procurou remediar a situação nas partes seguintes. Passou a concebê-lo como uma Divina Comédia russa, em que a primeira parte fosse o Inferno, a segunda, o Purgatório, e a terceira, o Paraíso. Assim, já na segunda, apareciam um proprietário rural benfeitor dos seus servos e outros tipos igualmente positivos, mas apresentados de maneira forçada. Deixando de explorar plenamente a veia satírica, o sarcasmo, o grotesco, Gógol não conseguia atingir o nível da primeira parte. Foi o que a crítica depreendeu das páginas que subsistem da segunda, embora também ali apareça o gênio criador de Gógol. O período em que a escreveu ficou marcado por uma intensa crise mística, enquanto a sua saúde declinava.
Pouco antes de morrer, Gógol queimou todos os manuscritos que tinha à mão, isto é, a segunda e a terceira partes de Almas mortas. Subsistiriam, no entanto, duas versões de uma fração da segunda, por existirem cópias. A parte queimada, testemunha um contemporâneo, teria sido superior à que subsiste, mas não há elementos seguros para confirmá-lo.
À medida que passa o tempo, “esse estranho Gógol”, cujas características psicológicas reais e cuja biografia se tornam cada vez mais difíceis de reconstituir, aparece menos estranho para nós. Pois, quando refletimos sobre a sua obra, ficamos admirados com a sua modernidade. Realmente, é difícil repetir hoje em dia o espanto de Prosper Mérimée ante o ilógico, o fantástico, da realidade descrita por Gógol. Depois de Kafka, não nos surpreende tanto esse mundo gogoliano, que os contemporâneos tinham muita dificuldade em admitir no seu valor geral e simbólico, e não apenas como simples descrição de costumes ou como uma acusação aos aspectos negativos da vida russa. Se temos de reconhecer a importância dessa acusação, somos também levados a aceitar Gógol como o grande desbravador de novos c aminhos, o gênio que nos mostra não só a Rússia de seu tempo, mas também a nossa condição humana. Eis por que nos voltamos, com respeito sempre crescente, para o legado desse “estranho” escritor, que nos aparece cada vez mais próximo e familiar.
Boris Schnaiderman
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