terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A Guisa de Provocação - Publicando A VELHICE DO PAI TERNO

"Aqui está um ateu como Guerra Junqueiro... sem igreja.

Quanto à estesia do titulo A Velhice do Padre Eterno, oferecem-se alguns reparos de índole caturra e bastantemente académica. Se o Padre é eterno, a eternidade do organismo consiste nos seus predicados refractários à acção desorganizadora do tempo que degenera o vitalismo da fibra. Eternidade e velhice são incompatíveis, inconciliáveis. Esta é a doutrina que me parece mais correntia em todas as Havanesas e em todos os gabinetes de leitura nacionais. Ora agora, se os preconceitos que Guerra Junqueiro satiriza pertencessem ao passado, e estivessem actualmente abolidos, poderia admitir-se alegoricamente que o Padre Eterno, a cuja sombra medraram esses preconceitos, envelhecesse; mas o eminente poeta satiriza-os porque vigoram e subsistem: logo, o Padre Eterno está robusto e muito vivedoiro.
A velhice é doença ou não é? Se não é, por que nos ensinaram transcendentalmente o senectus est morbus? Se é, podemos conjecturar da juvenil saúde de Jeová no Céu, pelas medranças salubérrimas da Estupidez na Terra. Cá em baixo, com o óleo dos maus fígados da hipocrisia dá-se ao espírito a robustez que o óleo dos fígados boas de bacalhau instila nos tecidos adiposos."


CAMILO CASTELO BRANCO 


Republicando agora A Velhice do Padre Eterno




A Velhice do Padre Eterno

de Guerra Junqueiro





A
EÇA DE QUEIRÓS

À MEMÓRIA
DE
GUILHERME DE AZEVEDO



AOS SIMPLES


Ó almas que viveis puras, imaculadas,
Na torre de luar da graça e da ilusão,
Vós que inda conservais, intactas, perfumadas,
As rosas para nós há tanto desfolhadas
Na aridez sepulcral do nosso coração;
Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,
Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas,
Da luz, olhar de Deus, da luz, bênção d'amor,
Que faz rir um nectário ao pé de cada abelha,
E faz cantar um ninho ao pé de cada flor;
Almas, onde resplende, almas onde se espelha
A candura inocente e a bondade cristã,
Como num céu d'Abril o arco da aliança,
Como num lago azul a estrela da manhã;
Almas, urnas de fé, de caridade e esp'rança,
Vasos d'oiro contendo aberto um lírio santo,
Um lírio imorredoiro, um lírio alabastrino,
Que os anjos do Senhor vêm orvalhar com pranto,
E a piedade florir com seu clarão divino;
Almas que atravessais o iodo da existência,
Este lodo perverso, iníquo, envenenado,
Levando sobre a fronte o esplendor da inocência,
Calcando sob os pés o dragão do pecado;
Benditas sejais vós, almas que est'alma adora,
Almas cheias de paz, humildade e alegria,
Para quem a consciência é o Sol de toda a hora,
Para quem a virtude é o pão de cada dia!
Sois como a luz que doira as trevas dum monturo,
Ficando sempre branca a sorrir e a cantar;
E tudo quanto em mim há de belo ou de puro,
- Desde a esmola que eu dou à prece que eu murmuro -
É vosso: fostes vós o meu primeiro altar.
Lá da minha distante e encantadora infância,
Desse ninho d'amor e saudade sem fim,
Chega-me ainda a vossa angélica fragrância
Como uma harpa eólia a cantar a distância,
Como um véu branco ao longe inda a acenar por mim!
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Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!...
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alivio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas...
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
O meu coração puro, imaculado e santo
Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,
Para toda a nudez uni pano do seu manto,
Para toda a miséria o orvalho do seu pranto
E para todo o crime o seu perdão de Pai!...
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A minha mãe faltou-me era eu pequenino,
Mas da sua piedade o fulgor diamantino
Ficou sempre abençoando a minha vida inteira,
Como junto dum leão um sorriso divino,
Como sobre uma forca um ramo d'oliveira!

*
* *

Ó crentes, como vós, no Intimo do peito
Abrigo a mesma crença e guardo o mesmo ideal.
O horizonte é infinito e o olhar humano é estreito:
Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal.

Toda a alma é clarão e todo o corpo é lama.
Quando a lama apodrece inda o clarão cintila:
Tirai o corpo - e fica uma língua de chama...
Tirai a alma - e resta um fragmento d'argila.

E para onde vai esse clarão? Mistério...
Não sei... Mas sei que sempre há-de arder e brilhar,
Quer tivesse incendiado o crânio de Tibério,
Quer tivesse aureolado a fronte a Joana d'Arc.

Sim, creio que depois do derradeiro sono
Há-de haver uma treva e há-de haver uma luz
Para o vício que morre ovante sobre um trono,
Para o santo que expira inerme numa cruz.

Tenho uma crença firme, uma crença robusta
Num Deus que há-de guardar por sua própria mão
Numa jaula de ferro a alma de Locusta,
Num relicário d'oiro a alma de Platão.

Mas também acredito, embora Isso vos pese,
E me julgueis talvez o maior dos ateus,
Que no universo inteiro há uma só diocese
E unia só catedral com um só bispo - Deus.

E muito embora a vossa igreja se contriste
E a excomunhão papal nos abrase e destrua,
A análise é feroz como uma lança em riste
E a verdade cruel como uma espada nua.

Cultos, religiões, bíblias, dogmas, assombros,
São como a cinza vã que sepultou Pompeia.
Exumemos a fé desse montão de escombros,
Desentulhemos Deus dessa aluvião de areia.

E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,
Há-de fazer, na mesma aspiração reunida,
Da razão e da fé os dois olhos da alma,
Da verdade e da crença os dois pólos da vida.

A crença é como o luar que nas trevas flutua;
A razão é do Céu o esplêndido farol:
Para a noite da morte é que Deus nos deu Lua...
Para o dia da vida é que Deus fez o Sol.

*
* *

Mas, ai! eu compreendo os martírios secretos
Do pobre camponês, já quase secular,
Que vê tombar por terra o seu ninho de afectos,
A casa onde nasceu seu pai, e onde seus netos
Lhe fechariam, morto, o escurecido olhar.
Compreendo o pavor e a lividez tremente
De quem em noite má, caliginosa e fria
Atravessa a montanha à luz dum facho ardente
E uma rajada vem alucinadamente
Apagar-lho co'a asa atlética e sombria,
Deixando-o fulminado e quase sem sentidos
A ouvir o ulular das feras e os bramidos
Do ciclone, que explui rouco do sorvedoiro,
E se enrosca furioso aos plátanos partidos
A estrangulá-los, como uma jibóia um toiro.
Compreendo a agonia, o desespero insano
Do náufrago na rocha, entre o abismo do oceano,
Vendo rolar, rugir os glaucos vagalhões
Como uma cordilheira hercúlea de montanhas,
Com jaulas colossais de bronze nas entranhas,
E um domador lá dentro a chicotear trovões.
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O vosso facho, o vosso abrigo, o vosso porto,
um Deus que para nós há muito que esta morto,
E que inda imaginais no entretanto imortal.
Vivei e adormecei nessa crença ilusória,
Já não podeis transpor os mil anos da história
Que vão do vosso credo absurdo ao nosso ideal.
Vivei e adormecei nessa ilusão sagrada,
Fitando até morrer os olhos de Jesus,
Como o efémero vão que dura um quase nada,
Que nasce de manhã num raio d'alvorada,
E expira ao pôr do Sol noutro raio de luz.
Eu bem sei que essa crença ignorante e sincera,
Não é a que ilumina as bandas do Porvir.
Mas vós sois o Passado, e a crença é como a hera
Que sustenta e dá inda um tom de Primavera
Aos velhos torreões góticos a cair.
Sim, essa crença é um erro, uma ilusão, é certo;
Mas triste de quem vai pelo areal deserto
Vagabundo, esfaimado e nu como Caim,
Sem nunca ver ao longe os palácios radiantes
Duma cidade d'oiro e mármore e diamantes
No quimérico azul dessa amplidão sem fim!
Quem há-de arrancar pois do seu piedoso engaste
O vosso ingénuo ideal, ó trémulos velhinhos,
Se a quimera é uma rosa e a existência uma haste?
Rosa cheia d'aroma e haste cheia de espinhos!
Quem vos há-de cortar a flor da vossa esp'rança,
Quem vos há-de apagar a angélica visão,
Se essa luz para vós é como uma criança
Que guia numa estrada um cego pela mão!
Quem vos há-de acordar desse sonho encantado?!
Quem vos há-de mostrar a evidência cruel?!
Ah! deixemos a ave ao ramo já quebrado,
E deixemos fazer ao enxame doirado
No tronco que está morto o seu favo de mel!
Ó velhos aldeões, exaustos de fadiga,
Que andais de sol a sol na terra a mourejar.
Roubar-vos de voss'alma a vossa crença antiga
Seria como quem roubasse a uma mendiga
As três achas que leva à noite para o lar!
Oh, não! guardai-a bem essa crença d'outrora;
É ela quem vos dá a paz benigna e santa,
Como a paz dum vergel inundado d'aurora,
Onde o trabalho ri e onde a miséria canta.
Guardai-a sim, guardai! E quando a morte em breve
Vos entre na choupana esquálida e feroz,
A agonia será bem rápida e bem leve,
Porque um anjo de Deus, mais alvo do que a neve,
Há-de estender sorrindo as asas sobre vós.
E vós conhecereis em seu olhar materno
Que é o anjo que embalou vosso sono infantil,
E que hoje vem do Céu mandado pelo Eterno
Para sorrir na morte ao vosso branco Inverno,
Como sorriu no berço ao vosso claro Abril.
E ao pender-vos gelada a fronte alabastrina
Irá levar a Deus o vosso coração,
Tão manso e virginal, tão novo e tão perfeito,
Que Deus há-de beijá-lo e aquecê-lo no peito
Como se acaso fosse uma pomba divina,
Que viesse cair-lhe, exânime, na mão!


 

 

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