Bhagavan Dasa
Murari Gupta e muitos outros devotos, inclusive Srila Prabhupada, tiveram de lidar com dúvidas filosóficas.
O desejo de suicídio já se instalara na sua consciência. Ele estava determinado a colocar fim em sua vida. Para isso, foi até um bairro na antiga Índia especializado em vender facas de primeira qualidade, capazes de cerrar búzios. Isso não era algo de se esperar por parte de um devoto tão conceituado, tão conhecedor da filosofia e tão amável como Murari Gupta. Por que, afinal, ele queria se matar? A filosofia védica, à qual entregara todo o seu coração, o decepcionara. Ele não era capaz de entender dois acontecimentos ali narrados.
Ele pensava consigo: “Isto eu posso entender: trazendo conSigo Seus associados, o Senhor faz Seu advento neste mundo para cumprir Sua missão. Contudo, não sou capaz de entender Suas atividades. Por que Ele age como age, ora criando, ora destruindo? Por que, após ter resgatado Sita e matado Ravana e sua dinastia, o Senhor, por fim, abandonou Sita? Então, em outra encarnação, Ele tranquilamente assistiu enquanto os Yadavas, que Lhe eram tão queridos quanto Sua própria vida, eram destruídos”. (Chaitanya-bhagavata 2.20.106-109)
Muitos podem ser os pontos filosóficos de conflito para cada devoto.
Essas foram as decepções de Murari com a filosofia que o levaram ao extremo da frustração na forma do desejo de suicídio. Decepções com a filosofia comuns em devotos da atualidade incluem: O que são essas descrições (aparentemente) sexistas, racistas, homofóbicas etc. das escrituras e dos mestres? Como conciliar o entendimento védico da origem do homem e do universo com as descobertas científicas atuais? Por que as escrituras descrevem os devotos como o epítome da perfeição, mas não vemos isso nos devotos com que convivemos? Por que Krishna mandou Arjuna matar Seus parentes em vez de outro proceder? Por que Krishna criou este mundo de tantos sofrimentos? E se os impersonalistas estiverem certos? Entre muitos outros.
Alguns talvez não vivenciem o tormento mental de uma decepção com a filosofia de vida que escolheram para si até o ponto de quererem se matar literalmente, mas muitos podem decidir abandonar essa filosofia, e Prabhupada diz que isso é o mesmo que suicidar. Como diz o Ishopanishad, aqueles que negligenciam a vida espiritual são “matadores do eu”.
Pergunte Muito – Quando Cansar, Pergunte Mais
A maneira mais óbvia para lidarmos com uma decepção com a filosofia é tentarmos sanar o conflito que se instaura obtendo instruções sobre o assunto com autoridades no mesmo. Isso é o mais óbvio a se fazer porque as bases de conhecimento que temos vieram disso. Foi ouvindo ou lendo as autoridades védicas que estabelecemos que Deus é amoroso, compassivo, igualitário etc. Assim, quando nos deparamos com algo que parece contradizer isso, é claro que serão essas mesmas autoridades que iremos recorrer em busca de esclarecimentos.
Eis a recomendação de Krishna: “A ciência suprema foi recebida através da corrente de sucessão discipular. Tenta aprender a verdade aproximando-te de um mestre espiritual. Faze-lhe perguntas com submissão e presta-lhe serviço. As almas autorrealizadas te podem transmitir conhecimento porque viram a verdade. As dúvidas que, por ignorância, surgiram em teu coração devem ser cortadas com a arma do conhecimento”. (Bhagavad-gita 4.2,34,42)
Uma bonita história de persistência é de Ravindra Svarupa, um mestre espiritual da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna. Ele conta que, desde pequeno, em escolas dominicais cristãs, perguntava o que Deus fazia em Seu tempo livre e como seria a vida eterna. As autoridades no conhecimento revelado que ele indagava não apenas não sabiam responder, mas revelavam expressões faciais indicativas de que nunca haviam se perguntado sobre isso. Por fim, ele ficou sem respostas satisfatórias e formou em sua cabeça a ideia de que Deus estava tão entediado quanto ele nas escolas dominicais. Sem interromper sua busca, um dia Deus lhe respondeu essa pergunta apresentando-Se no Srimad-Bhagavatam,pela misericórdia de Srila Prabhupada. Ali, ele pôde conhecer os passatempos de Krishna, o que Deus faz na eternidade, onde não há necessidade de fazer nada, porém se faz infinitas coisas como em uma brincadeira.
Na Bhagavad-gita, Krishna incentiva Arjuna a fazer perguntas, e Arjuna o faz até sua plena satisfação.
Assim, um questionamento pode ficar sem resposta por muito tempo, até o dia feliz de um entendimento completo advindo da boca de uma grande alma ou das escrituras. Prabhupada foi alguém que teve que conviver com uma dúvida intensa por muito tempo acerca do caráter de seu guru. Quando Prabhupada ouviu seu mestre espiritual mandar matar uma cobra, ficou muito confuso, pois esperava que uma personalidade exemplar não se envolvesse com mortes. Muitíssimos anos depois, quando Prabhupada estava traduzindo o Srimad-Bhagavatam, deparou-se com este verso: “Levando-se em conta que até mesmo as pessoas santas sentem prazer quando é morto um escorpião ou uma cobra, todos os mundos obtiveram imensa satisfação na morte do demônio [Hiranyakashipu]”. (Srimad-Bhagavatam 7.9.14) Nesse momento, Prabhupada chorou. A dúvida que tinha sobre o caráter de seu mestre fora esclarecida.
Valorize o que Agrada e Conviva com o Monstrinho
Consideremos o que é uma decepção. A decepção nunca envolve algo ou alguém que não amamos. Digamos que você ligue a televisão agora e veja uma reportagem: “Homem mata mulher a facadas por ciúmes”. Se você não conhece esse homem, você experimentará diversos sentimentos, como ira, revolta e tristeza, mas você não sentirá decepção, porque você nunca depositou confiança nele. Se, no entanto, o assassino fosse o pastor da Igreja que você frequenta há anos, você poderia colocar “decepção” na lista de sentimentos, pois houve uma longa relação de amor e confiança com essa pessoa até o evento terrível.
Srila Prabhupada conviveu com o monstro da dúvida enquanto servia seu mestre espiritual e a humanidade.
No tocante à filosofia, também somente se decepcionará quem já tem uma relação amorosa com ela. Assim, devemos saber reter o amor que temos pelo restante da filosofia enquanto convivemos com o “monstrinho” da decepção. Srila Prabhupada, por exemplo, não abandonou a ordem de seu mestre espiritual de pregar em língua inglesa até que sanasse a questão do suposto “desapiedado assassino de cobras”. Ao contrário, foi exatamente enquanto servia a ordem de pregar em língua inglesa – enquanto traduzia o Srimad-Bhagavatam – que o questionamento foi respondido.
Se você, então, aceita que Krishna é a mais perfeita personalidade de Deus, que o processo de bhakti-yoga é a melhor descrição de como condicionar a mente a pensar plenamente em Krishna etc., você não deve abandonar todas essas convicções quando alguma dúvida pontual, ou várias dúvidas pontuais, se fazem presentes. O ideal é conviver com elas, enquanto indaga sobre elas, e seguir com a força do que você tem certeza. Talvez, é claro, a resposta perfeita ao conflito nunca venha. Quanto a isso, Prabhupada disse: “O melhor é adotar o processo e alcançar Krishna. Então, pode-se perguntar pessoalmente a Krishna”.
Krishna Quer Você
Nem só de respostas intelectuais vive o homem, não é? Decepções com a filosofia talvez surjam de um intelecto aguçado. Conflitos surgem de devotos que não apenas estudam a literatura védica, mas também estudam arqueologia, indologia, evolucionismo, feminismo, sistemas políticos, advaita-vedanta etc., e que têm um senso de lógica sofisticado, querendo testar a solidez e coerência de uma teologia. Todas essas análises são muito inteligentes, e o desejo por respostas por parte de pessoas assim naturalmente questionadoras é intenso. No entanto, vejamos como termina a história da postura suicida de Murari.
Krishna, que estava na Terra como Sri Chaitanya, foi até a casa de Murari. Sendo Sri Chaitanya a Superalma no coração de toda entidade viva, foi até a casa de Murari por estar ciente de que ele intencionava se matar naquele dia. Surpreendentemente, Sri Chaitanya não esclarece os pontos de dúvida de Murari, senão que simplesmente pede que Murari entregue-Lhe a faca e desista do suicídio. Murari fica espantado, não sabendo como Sri Chaitanya sabia daquilo. Murari tenta desconversar: “Quem pode ter dito a Você tamanha mentira?” (Cb 2.20.120)
Nesse momento, Sri Chaitanya aproveita para indicar a Seu devoto que ele não era tão inteligente quanto pensava: “Porque você acha que é preciso que alguém Me conte algo para que Eu tome conhecimento do mesmo, vejo que você não é muito inteligente”. (Cb 2.20.121) Sri Chaitanya parece apontar: “Você não entende nem mesmo o básico de que Eu sou onisciente, como poderia entender nuanças de atividades complexas que exerço em Meus passatempos?”
Continuando com uma postura inesperada, Sri Chaitanya não esclarece as dúvidas de Murari. Ele considera mais urgente apontar o quanto ama Murari: “Murari, veja como você se comporta coMigo! Onde errei para que você queira ir embora, deixando‐Me para trás? Se você partir, quem Me ajudará em Meus passatempos? De onde você tirou essa ideia de se matar? Murari, imploro-lhe este presente: por favor, nunca mais pense novamente dessa forma”. (Cb 2.20.124-126) Depois de assim falar, Sri Chaitanya abraçou Murari.
No diário Qual É a Dificuldade (capítulo 164), de Srutakirti Dasa, ex-secretário pessoal de Srila Prabhupada, encontramos este relato:
Uma noite, após dias de discussão sobre a Lua e outros tópicos concernentes à cosmologia do universo, eu massageava as pernas e os pés de Srila Prabhupada enquanto ele permanecia deitado em sua cama. A maior parte do tempo em que eu o massageava à noite, ele permanecia deitado em silêncio enquanto eu friccionava seus pés e amassava gentilmente suas pernas. Eu me sentia em profunda paz enquanto executava meu serviço naquela pequena sala. De repente, Srila Prabhupada olhou para mim e perguntou: “Então, você me ouviu dizer muitas coisas. Você acredita no que eu disse, que esses cientistas nunca foram à Lua? Você aceita isso? Você entende? Você não vai deixar o movimento, vai?”
Eu estava surpreso, mas confortado por sua pergunta. Ele estava preocupado com o meu bem-estar espiritual e não queria que dúvidas me conduzissem para longe de seus pés de lótus. Eu disse com um sorriso: “Sim, Prabhupada. Eu aceito”. Então, compassivo, ele disse: “Sim! Eu quero que você entenda. Uma vez, eu tive um servo, Purushottama. Quando eu disse que nós não tínhamos ido à Lua, ele ficou muito indignado e foi embora. Mas você está bem? Você pode aceitar este fato?”
Eu me senti completamente protegido por Sua Divina Graça. Sua genuína preocupação comigo aumentou meu amor por ele e também aumentou minha fé em cada palavra que ele dizia. Eu olhei para ele enquanto massageava seus primorosos e dourados pés de lótus e lhe assegurei: “Sim, Prabhupada. Está tudo certo. Eu acredito no senhor e acredito que não fomos à Lua”. Ele continuou olhando para mim com um sorriso no rosto e, com voz de alívio, disse: “Isso é ótimo, pois não quero que você vá embora como fez o nosso Purushottama”.
Podemos lidar com as dúvidas fazendo perguntas a grandes autoridades e, assim, sanando as questões. Ou podemos conviver com elas por consideração aos pontos da filosofia onde não temos dúvidas. Mas existe este terceiro convite poderoso a ficarmos: Sri Chaitanya quer que participemos dos Seus passatempos, porque nos ama muito, e Prabhupada teme, com o coração apertado, que talvez partamos, como fez Purushottama. Este é um acontecimento certamente memorável: Buscarmos por uma resposta filosófica, mas terminarmos recebendo um abraço de Sri Chaitanya por trás, e, pela frente, um abraço de Seu servo mais confidencial.
Sobre o autor: Bhagavan Dasa é discípulo de Dhanvantari Swami e cursou o Seminário de Filosofia e Teologia de Campina Grande no ano de 2005, quando recebeu o título Bhakti-shastri. É graduado em Letras, graduando em Filosofia e atua como tradutor na Bhaktivedanta Book Trust do Brasil desde 2006. É casado e pai de um menino.
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