O direito de voto: a controversa história da democracia nos Estados UnidosEscrita pelo historiador Alexander Keyssar, da Harvard University, publicação premiada ganha edição em português
Com uma palestra intitulada “O direito de voto e a recente (e próxima)
eleição nos Estados Unidos”, o historiador Alexander Keyssar, professor
titular de História e Política Social da Harvard University, lançou em
São Paulo o seu livro O direito de voto: a controversa história da
democracia nos Estados Unidos.
Em 2001, ano seguinte ao lançamento na América do Norte, a obra – cujo
título em inglês é The right to vote: the contested history of democracy
in the United States – recebeu prêmios da American Historical
Association e da Historical Society, dos Estados Unidos, além de figurar
entre as finalistas para o Pulitzer Prize e o Los Angeles Times Book
Award. A edição brasileira se baseia no texto revisado de 2009.
No Brasil a convite do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para
Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) – financiado pela FAPESP e
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) –, Keyssar iniciou a sua palestra comentando o resultado das
eleições legislativas norte-americanas ocorridas no início de novembro,
que deram aos republicanos o controle do Senado e aumentaram sua maioria
na Câmara.
“A participação foi extremamente baixa: 36% dos eleitores votaram e os
republicanos receberam 52% dos votos. Fazendo a conta, 52% de 36%
significam que a maioria republicana foi obtida com apenas 18,5% dos
eleitores. Foi um voto predominantemente protestante e masculino”,
disse.
Segundo o historiador, além do baixo comparecimento às urnas, um aspecto
notável dessa campanha foi o montante de dinheiro investido. “Houve um
aporte sem precedentes. Dinheiro não das campanhas oficiais, não dos
partidos, não dos candidatos, mas de outras organizações, muitas vezes
secretas. Dinheiro de corporações. Especialmente em alguns estados
ocorreram verdadeiras inundações desse tipo de dinheiro. E não foi uma
eleição presidencial. Enormes quantidades de dinheiro foram investidas
na compra de horários na televisão”, afirmou. Aqui, é preciso lembrar
que não existe horário eleitoral gratuito nos Estados Unidos.
Outro fator evidenciado, segundo ele, foi o conflito legal e político
sobre quem podia e quem não podia votar. Em muitos estados, até 10 dias
ou uma semana antes das eleições, não estava claro que leis regeriam o
direito de voto.
“Havia a lei exigindo que os eleitores mostrassem uma identificação com
fotografia. No Texas, por exemplo, onde a exigência de identificação
fotográfica é muito estrita, carteiras de estudantes universitários com
fotografias não foram aceitas como documentação de identificação, mas
licenças para dirigir veículos sim. Então houve casos de pessoas que não
puderam votar porque haviam ficado incapacitadas de guiar e, por isso,
não tinham renovado suas carteiras de motorista”, exemplificou Keyssar.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, não existem, nos Estados Unidos,
documentos como a carteira de identidade e o título de eleitor.
O historiador enfatizou que os empecilhos observados nas últimas
eleições norte-americanas não constituem exemplos pontuais. Conforme
argumentou, o país possui várias barreiras para impedir o direito de
voto.
Enquanto as eleições brasileiras são realizadas em geral aos domingos,
as norte-americanas ocorrem durante a semana, em dias de trabalho
normal, o que prejudica o comparecimento dos eleitores aos locais de
votação. Em alguns estados, o fato de a pessoa ter cometido algum crime
faz com que ela perca o direito de voto para o resto da vida, mesmo
depois de ter cumprido sua pena e ter sido reintegrada à sociedade. “De
uma maneira ou de outra, são colocados obstáculos no caminho que leva as
pessoas ao voto”, resumiu.
“A justificativa oficial para alguns desses obstáculos é que eles se
destinam a impedir fraudes. Mas o que realmente fazem é impedir que
certos segmentos da sociedade votem. São segmentos basicamente
constituídos por pessoas pobres – em especial os idosos e os jovens
pobres. Pessoas que não têm carteiras de motorista nem passaporte”,
disse.
De acordo com a análise do professor, há apenas um tipo de fraude que a
apresentação da identidade poderia prevenir, que é a pessoa tentar se
passar por outra – aquilo que, em inglês, é chamado de impersonation
fraud (‘fraude de representação’).
Mas, segundo ele, esse é um crime praticamente inexistente nos Estados
Unidos. “No estado de Indiana, que aplica estritamente essa lei, não foi
constatado um único caso como esse em 50 anos”, ironizou.
A crise da eleição presidencial de 2000
Keyssar apontou como uma das causas dessa obstrução do voto em épocas
recentes o ensinamento proporcionado pela eleição presidencial de 2000.
Naquela ocasião, embora o candidato democrata Al Gore tenha obtido a
maioria dos votos populares, com uma margem de mais de 500 mil votos
sobre o republicano George W. Bush, foi este que conquistou a
Presidência, graças à sua controversa vitória no estado da Flórida.
Com os 25 votos da Flórida, Bush suplantou Gore no Colégio Eleitoral. E o
resultado, que repercutiu fortemente no mundo durante oito anos
seguidos, foi conseguido com apenas cerca de 500 votos a mais na
Flórida.
“Isso trouxe para os políticos profissionais e para os líderes
partidários o entendimento de que cada voto de fato conta. E não apenas
cada voto que o seu candidato recebe, mas, igualmente, cada voto que o
adversário deixa de receber. Daí o interesse em obstruir os potenciais
eleitores do adversário. Após 2010, os republicanos assumiram o controle
de vários governos estaduais e utilizaram essa posição para mudar as
leis de acordo com suas conveniências”, afirmou Keyssar.
A eleição presidencial de 2000 representou a mais grave crise do sistema
eleitoral norte-americano, de acordo com o historiador. Além da
contradição entre o voto popular (baseado no princípio “uma pessoa, um
voto”) e a composição do Colégio Eleitoral (que favorece as áreas
culturalmente mais atrasadas do país), houve várias acusações de fraude
na Flórida, então governada pelo irmão de George W. Bush, John Ellis
Bush, mais conhecido como “Jeb”, provável candidato republicano às
eleições presidenciais de 2016.
A secretária de estado da Flórida, Katherine Harris, responsável pela
administração das eleições em âmbito estadual, era também copresidente
da campanha de Bush.
Segundo Keyssar, as fraudes teriam ocorrido tanto no processo de votação
quanto na contagem dos votos, com indícios de discriminação racial e
exclusão de comunidades pobres e de minorias. O tema é analisado no nono
capítulo do livro.
Após prolongado embate judicial entre os dois concorrentes, a
controvérsia foi encerrada com a decisão da Suprema Corte, ordenando a
suspensão da recontagem dos votos da Flórida, com base no artigo 2,
inciso 1, da Constituição norte-americana, que diz: “Cada estado
nomeará, do modo que seu legislativo disponha, certo número de
eleitores”.
Isso significava que, mesmo que Gore tivesse recebido a maioria dos
votos populares na Flórida, isso não lhe asseguraria os 25
representantes do estado, pois a decisão final caberia ao Legislativo
estadual (então, majoritariamente republicano).
De acordo com cinco juízes da Suprema Corte, o texto da Constituição
indicava claramente que “o cidadão individual não tem o direito
constitucional federal de votar em eleitores para o presidente dos
Estados Unidos, a menos que e até que o Legislativo do estado escolha
uma eleição em âmbito estadual como meio de executar seu poder de nomear
os membros do Colégio Eleitoral”.
“Muitos norte-americanos se surpreendem quando eu digo isto, mas o fato é
que o direito de voto não está assegurado pela Constituição dos Estados
Unidos”, comentou Keyssar.
Há vários motivos para tanto, explicou o historiador. Um foi que não
estava claro, na época da redação da Constituição, se o voto era
realmente um direito ou um privilégio. Outro, que a decisão sobre quem
poderia votar ou não foi deixada para os estados. Assim, em vez da
criação de um sistema nacional, adotou-se um quadro completamente
descentralizado acerca dos direitos eleitorais.
Expansões e contrações da democracia
O contraditório encadeamento de causas e efeitos que conecta esse ato
fundador à contemporaneidade é o fio condutor do livro de Keyssar. No
decurso da história norte-americana, houve momentos de expansão real da
democracia, como a inclusão da 15ª emenda à Constituição, que, em 1869,
após a devastação causada pela Guerra Civil, estendeu o voto à população
negra, estabelecendo que o direito dos cidadãos dos Estados Unidos ao
voto não seria “negado ou reduzido pelos Estados Unidos ou por qualquer
estado por motivo de raça, cor ou condição prévia de servidão”.
E momentos de contração democrática, como o ocorrido nos estados do Sul
entre 1890 e 1905, quando, sem violar abertamente a 15ª emenda, uma
série de modificações nas leis eleitorais foram feitas de modo a excluir
os afro-americanos: instituição de taxas eleitorais a serem pagas;
imposição de um teste de alfabetização exigindo dos potenciais eleitores
a demonstração de que poderiam compreender e interpretar a
Constituição; requisitos de residência por longo tempo na área da
circunscrição eleitoral; cassação de direitos eleitorais para homens
condenados por delitos menores como vadiagem e bigamia.
Uma forma ardilosa de impedir o voto dos negros foi criar as chamadas
“Primárias Brancas” (“White Primaries”). Para votar nas eleições
primárias para candidatos do Partido Democrata (que era, então, a força
política mais conservadora e dominante no Sul), a pessoa devia ser
branca e não imigrante. O argumento utilizado pelos racistas era de que,
por se tratar de eleições primárias, a 15ª Emenda não se aplicava.
“O que é menos conhecido”, disse Keyssar, “foi que no Norte houve um
movimento similar contra trabalhadores, imigrantes e pessoas pobres em
geral”.
O historiador procurou evidenciar os mecanismos econômicos, sociais,
políticos e culturais subjacentes a esse vaivém dos direitos. Como, por
exemplo, o crescimento da classe trabalhadora e a chegada maciça de 25
milhões de imigrantes no período compreendido entre o fim da Guerra
Civil e a Primeira Guerra Mundial.
Esses imigrantes, escreveu no livro, eram “homens e mulheres que não
falavam inglês, cujas culturas eram estrangeiras, a maioria dos quais
era católicos ou judeus”. E acrescentou: “Aos olhos de muitos
norte-americanos da velha cepa, essa massa de trabalhadores imigrantes
constituía um acréscimo indesejável ao eleitorado”.
Segundo projeção feita pelo Census Bureau, a agência responsável pelas
estatísticas populacionais nos Estados Unidos, a atual minoria,
constituída por cidadãos de origem negra, hispânica, asiática etc., será
maioria por volta do ano de 2042. Resta saber como um sistema eleitoral
historicamente moldado pelos interesses da elite branca será impactado
por essa nova realidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário