terça-feira, 9 de setembro de 2014

Crônica da Urda - SERRA CATARINENSE/FOGUEIRA

SERRA CATARINENSE/FOGUEIRA
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(Para Eduardo Venera dos Santos Filho)

(...) você anunciou que iríamos fugir. Deslizamos rapidamente para o quarto. Você procurou um agasalho para mim e perguntou se eu tinha a chave para voltar, e um instante depois pulávamos a janela e fugíamos correndo até seu carro.
Lembra como a vida era linda? Lembra o quanto nós nos amávamos? Lembra de como ficamos rodando sem destino por algum tempo, até que você me perguntou se eu tinha algum plano, alguma ideia do que faríamos a seguir? Pensei um pouco e disse-lhe que poderíamos fazer uma fogueira. A ideia parecia um pouco estranha, mas era lindo pensar num grande monte de fogo subindo por dentro da noite fria e escura, e você perguntou-me aonde é que faríamos a fogueira. Disse-lhe que poderíamos procurar algum lugar, e no instante seguinte você pisava forte no acelerador e seguia para fora da cidade.
Rodamos devagar pela rodovia, observando atentamente ambas as margens, tentando idealizar uma fogueira em algum dos lugares que víamos. Havia um local em que a estrada rasgara a encosta de uma coxilha suave, uma coxilha onde havia um capão de mato: pinheiros altos sombreando raquíticas árvores que mais se assemelhavam a arbustos. Resolvemos tentar aquela: sob pinheiros, sempre há galhos caídos, e se lá não houvesse madeira, tínhamos tempo para procurar outro lugar.
 Você lembra? Do pequeno barranco, da cerca de arame que delimitava a rodovia, da árvore que fora quebrada ou derrubada recentemente, entrevista na claridade da lua que se filtrava entre os pinheiros? E de como procuramos erva seca, agulhas de pinheiro e pequenos galhos para começarmos o nosso fogo? E de como tudo estava tão molhado de orvalho que gastamos uma caixa de fósforos inteira sem conseguirmos sequer uma chama? E de como você se feriu nas farpas do arame da cerca, quando foi até o carro buscar outra caixa de fósforos? E você lembra como a noite era mágica e linda, como a noite era cheia de ternura e poesia, e de como a vida era bela?
Afinal, conseguimos a primeira chama, frágil, vacilante, e cuidamos dela como se fosse um amor perfeito assustado, com medo de desabrochar. Talvez tivéssemos tanto amor que transmitíssemos coragem ao amor perfeito amedrontado – a chama se ergueu, orgulhosa, desdobrou-se em outras, exigiu alimento, e corremos a lhe oferecer cada vez galhos mais grossos , quebramos pedaços da árvore derrubada, até que a fogueira se tornou plena e lhe demos a árvore inteira de presente.
O fogo, afinal, crepitou e subiu pela noite como uma coluna sagrada, e a fascinação que sentíamos por ele provavelmente era igual à fascinação dos primeiros homens das cavernas diante do primeiro fogo que existiu. Ele já não precisava de nós, mas nós precisávamos dele, e nos sentamos, um em cada lado da fogueira, a olhar para as chamas enormes, exigentes, bailarinas, coloridas, devorando um pedaço da noite como uma criança faminta devora um pedaço de torta, soltando milhões de fagulhas efêmeras pelo ar, fazendo sombra para a lua que se tornou pálida e distante. Tínhamos uma fogueira inteira para nós; tínhamos pedras para nos sentarmos; tínhamos o céu como nosso teto – o que mais a vida poderia nos oferecer? Eu olhava para você sentado lá do outro lado, absorto na contemplação do fogo, com as chamas criando sombras dançantes sobre a perfeição das linhas do seu rosto, com as chamas esculpindo em suas faces uma estátua que parecia pétrea e encantada, e comparava-o a Winnetou sentado ao lado de alguma fogueira de lenda, no meio do descampado desolado de uma campina de Karl May.
 
 
                                                                                                                    1973.
 
                                                                                            Urda Alice Klueger
                                                                                             Escritora, historiadora e doutora em Geografia.    

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