Eu me lembro com intensa nitidez dos profundos olhos aveludados e escuros
daqueles homens, daquelas moças. Passei a conhecê-los nos Fóruns Sociais
Mundiais de Porto Alegre – costumava chegar quase na hora do começo da passeata
de abertura, e quando meus amigos me perguntavam:
- Vamos todos juntos?
Eu não titubeava:
- A gente se encontra depois. Vou junto com quem tiver mais necessidade
de apoio. Vou ver se encontro o pessoal do Iraque, ou da Palestina...
Sempre encontrava o da Palestina. Eram homens de profundos olhos
inteligentes e sofridos; eram moças com olhos iguais, algumas vestidas como
certas figuras bíblicas femininas que pintores do Renascimento pintaram, e
sempre com tamanha fé na Justiça! Vinham em poucas pessoas lá do seu mundo
distante e garroteado, poderiam sumir no meio de multidões de 100.000 pessoas
com as suas humildes “hattas”[1], mas eram eles os mais visíveis, porque as
pessoas que se abalavam até os Fóruns Sociais Mundiais bem sabiam da realidade
torturante daqueles irmãos. Na primeira vez que desfilei com eles decerto
pareci-lhes estranha – não falávamos uma palavra sequer um da língua do outro,
mas já lá no final, chegando ao anfiteatro do Pôr-do-Sol (quanta saudade!),
alguém serviu de intérprete e contou para um dos palestinos que eu perdera um
emprego por defender a Palestina. O homem de profundos olhos de veludo deu uma
risada contagiante, e respondeu algo que também me foi traduzido: ele também
perdera o emprego por ser palestino! Nosso simpático contato sem palavras
começou ali.
Em outras ocasiões em que nos encontramos eles já me recebiam
calorosamente com seus olhos que tudo expressavam, e que tinham uma ternura
aveludada que poderia adoçar o mundo.
Depois que os Fóruns Sociais Mundiais saíram de Porto Alegre e foram para
outros países, passamos a ter uma palavra de contato: quando nos encontrávamos,
sempre primeiro na passeata de abertura, apontávamos uns para os outros e
dizíamos: “Porto Alegre!”, palavra chave que, aliada aos olhos profundos e
misteriosos deles, significava todo um caloroso discurso. E nos abraçávamos como
irmãos que somos (ou eram? Estarão vivos?), e na passeata de Caracas/Venezuela,
um dos homens mais velhos tirou da sua mochila uma belíssima bandeira da
Palestina em seda verde, vermelha branca e preta, e me deu. Sorrimos um para o
outro e dissemos a palavra mágica:
- Porto Alegre! - e eu guardo com imenso carinho aquela bandeira de seda
assim como a recebi, talvez ainda trazendo entretecido nos seus fios finos
esporos ou pólen de plantas ou de outras formas de vida daquela distante
Palestina onde provavelmente não poderei ir no decorrer da minha vida, pois
envelheço, e o gueto que é a Faixa de Gaza está cada vez mais inacessível, e a
mágoa da minha desesperança me faz pensar muito na solução final[2] dada ao Gueto de Varsóvia...[3]
Vejo as notícias e as fotos na Internet, e sei de tantas coisas, faz
tanto tempo! Sei como os meus irmãos da Palestina tem que suportar o cheiro
nauseabundo do lixo em decomposição, pois o Estado de Israel não deixa sequer
que de lá se retire o lixo... e sei das crianças palestinas que são feridas por
obuses lançados por tanques enquanto brincam, e que morrem de hemorragia nos
portões do seu gueto porque insensíveis membros do exército israelense dizem que
só dali a tantas horas tal portão poderá ser aberto, para a criança chegar a um
hospital... e sei de detalhes que me deixam com vergonha por ser chamada de
humana, pois um exército a serviço de também ditos humanos sionistas faz coisas
que quase não são críveis, como derrubar um edifício inteirinho para matar um
único homem a quem perseguem, e que sabem que está escondido no poço do
elevador... ou esse mesmo exército lançar um míssel sobre uma inocente festa de
casamento, ou sobre uma formatura de guardas de trânsito...
Mil páginas seriam poucas para enumerar todos os horrores que sei, que
tenho lido, tenho sabido, tenho aprendido sobre o que o governo de Israel faz
com o Gueto de Gaza sob os olhos de todo o mundo, como se ninguém se importasse.
O espaço, aqui, não permite entrar nas causas históricas dos acontecimentos, mas
é bom aprender a respeito, para se entender que Israel não tem razão, que os
horrores que vêm desde a década de 1940 são dos mais abjetos da humanidade. O
que me horroriza ainda mais, neste momento, são as fotos que não param de chegar
de Gaza, de crianças carregadas nos braços dos pais, sem os pés e parte das
pernas, com tendões e nervos que sobraram retorcidos como se fossem molas de
metal, ou das fileiras de meninos e meninas nos seus trajes de frio, mortinhos,
prontos para o funeral, e das caras sem consolo dos pais que ali estão, ou
daquele menininho morto e ensangüentado, que o pai carrega no colo embrulhado na
bandeira, bandeira igual àquela que tenho, menininho que nunca terá nos olhos
aquela força forte como aço e suave como veludo e que nunca entenderá a palavra
“Porto Alegre” – de novo digo que mil páginas seriam poucas para contar sobre
cada foto, cada fato, cada texto e cada análise que tenho lido – um último fio
que me une à esperança é a existência daquela gente de Israel que se nega ao
crime, daqueles soldados israelenses que preferem a prisão do que ir assassinar
seus irmãos já quase mortos de fome, frio e sede no gueto vizinho – pois Gaza
hoje tem 1.500.000 habitantes trancafiados sem recursos numa área de
350
quilômetros quadrados, o que é mais ou menos a metade do
tamanho desta minha pequena cidade de Blumenau...
Não há como dizer “enfim”, para um texto como este. A dor e a mágoa por
se saber que tais injustiças continuam acontecendo diante do mundo é uma coisa
que poderia me matar de angústia, e então tenho que reagir escrevendo, que é o
meu jeito de ser – mas o que escrever, se todos os grandes escritores, todos os
grandes pensadores deste mundo já escreveram tudo o que eu gostaria de escrever,
pois não é só a mim que a indignação arrasa – e por todos os lados as populações
estão saindo às ruas para protestar contra este massacre inumano? Então achei
que poderia escrever sobre os meus palestinos, aqueles que sabem a palavra
“Porto Alegre”, e que tem aqueles olhos profundamente cheios de significado,
força e doçura. Então penso se estarão vivos, se aquelas lindas moças não serão
hoje cadáveres só com meia cabeça, ou se os netinhos daqueles homens não
estejam, talvez, com ferimentos como se fossem couve-flores de sangue nas suas barriguinhas de
meninos mortos, ou se meus próprios amigos já não terão vidrados e frios os seus
olhos que eram cheios de doçura e de força...
Ah! Palestina, ah! Palestina, como me dóis cá dentro do meu peito que
parece estraçalhado... Ah! Palestina, ah! Palestina, que me resta fazer além de
chorar angustiadamente, como estou a fazê-lo agora?
Blumenau, 06 de Janeiro de
2009.
(Escrito em 2009, mas de grande
atualidade neste momento, julho de 2014.)
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e
doutora em Geografia pela UFPR
[1] Hatta: Lenço palestino, quadriculado de preto e branco,
ou de vermelho e branco, que se tornou um símbolo de resistência. Era usado por
Yasser Arafat.
[2] Solução final: expressão usada pelo nazismo que
significava, a grosso modo, “matar todos”.
[3] Gueto de Varsóvia: onde 380.000 judeus foram
implacavelmente mortos pelos nazistas até a última pessoa. Procurar se informar
melhor a respeito. Hoje é o Estado de Israel que repete a história, matando sem
piedade os palestinos da Faixa de
Gaza.
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