O menino de Porto
Alegre
Faz ano e meio que ele está
engasgado aqui no meu peito e na minha garganta – não há como não deixá-lo
sair.
Era tempo da Feira do Livro de Porto Alegre e eu fora até lá movida pela
curiosidade, pela saudade, e também porque ia autografar algum livro que já não
lembro qual seja.
A curiosidade é fácil explicar: há quase três décadas ouvindo falar
daquela feira, sem ir lá... Já a saudade sempre é uma coisa mais complexa:
descobrira Porto Alegre por causa dos Fóruns Sociais Mundiais, naquele deleitoso
tempo em que para lá ia com o coração explodindo no peito e a força da esperança
e do sonho era como uma contínua queima dos mais coloridos fogos de artifício...
Já voltara a Porto Alegre depois dos Fóruns e já me dera conta de que não era
bem assim, e agora era a Feira do Livro, e fosse como fosse, árvores loucamente
floridas de azul explodiam por sobre a Praça da Alfândega e encontrei lá meu
amigo escritor Luiz Carlos Amorim, e juntos caminhamos pela Rua dos Andradas até
o Gasômetro, eu contando a ele do Passarinho que carregava no peito, e depois
fomos vasculhar de novo o Hotel Majestic e aquele Poeta que um dia lá viveu e
deixou-o encantado para sempre, o inigualavelmente e majestosamente simples
Quintana, pois não há como a gente se cansar de vasculhar sempre de novo o Hotel
Majestic à procura de mais um detalhe de
Quintana...
Tinha ido lá para três ou quatro dias, já não lembro, e em algum momento
era tempo de pensar em começar a voltar. Já vagara por tudo ali; já tivera minha
tarde de autógrafos; já comprara os lindos livros infantis que daria de presente
no Natal e os balagandãs que uso até hoje – era tempo de tomar o rumo da
rodoviária e comprar a passagem de volta.
Eu não sei explicar muito bem essa coisa de trens de Porto Alegre – sei
que eles existem e que a gente vai a diversos lugares próximos e distantes com
eles. A rodoviária era um dos lugares próximos, e num instante eu tinha
resolvido o meu assunto e já me dirigia ao trem de volta. Era um trem
subterrâneo, mas lá a gente não chama de metrô, embora tenha que descer ampla
escada para chegar à estação. E ali estava o
menino.
Que idade teria aquela criança? Onze, doze, treze? A vida de abandono e
de fome deixava pouca margem para adivinhações, e os andrajos e a sujeira que o
cobriam pioravam a avaliação. Calculei: no mínimo um ano sem tomar banho ou
trocar de roupa, mas isso não era nada diante dos olhos surrados e amedrontados
daquela criança que fico imaginando como conseguira sobreviver até ali e que
agora penso se ainda vive. Talvez, ao invés de onze, aqueles farrapos
encobrissem um menino de quinze anos, já pleno de hormônios que o mandavam
perpetuar a espécie com urgência. Como brotara aquela criança ali no asfalto da
cidade, e sobrevivera até eu poder conhecê-la? Quem tudo ajudara a surrá-lo para
que ele tivesse nos olhos aquela expressão que eu agora via? Como é que as
pessoas permitiam que o Capital produzisse meninos como aquele, com tamanha
avidez de qualquer coisa que lhe permitisse mais uma semana, mais um dia, e
ficassem indiferentes e até o escorraçassem monotonamente, como aquele ali era
escorraçado, pois seus acuados olhos de bichinho do mato que a tudo vigiavam com
cupidez e medo não lhe permitiam sequer descer a escada que levava à estação de
trem, onde as pessoas tiravam dinheiro do bolso e recebiam moedas de troco,
moedinhas que talvez fossem o elo possível entre aquele menino desesperado e a
vida...
Nós nos olhamos e não sei o que ele leu nos meus olhos, mas eu pude ler a
ansiedade, o medo e o desejo de vida nos olhinhos absurdamente acuados daquele
quase bichinho produzido pelo asfalto e pelo Capitalismo, e senti vergonha de
pertencer a Humanidade. Desci a escada enquanto ele ficou me espiando lá em
cima, como quem espera – que, afinal, teria lido nos meus olhos? Comprei a
passagem de trem e ganhei as moedas de troco, e então voltei correndo até o alto
da escada e passei-as para as mãos ávidas daquele menino que lutava contra a
fome de mais um dia, e ele as agarrou avidamente. Tinha que descer correndo de
novo: o trem já ia partir, e o menino sequer poderia descer para abanar para
mim, pois já tinham escorraçado-o tantas vezes que ele não se atrevia. E me fui,
mas ele veio junto, e está aqui dentro do meu peito por todo este ano e meio,
querendo pular para fora.
Sei que aquelas moedas não significavam nada, que ele precisava de banho,
carinho, sopa quente, leite com chocolate, muito abraço, precisava tirar dos
olhos aquele desespero da vida, e que por todas as grandes cidades deste meu
terceiro mundo há meninos assim desesperados, um ano sem banho, lutando por mais
um dia de vida – mas foi aquele menino de Porto Alegre quem entrou dentro de mim
com esta força toda que ele tinha, pois nem sei se conseguiu continuar
vivendo.
Ah! Menino, agora pulaste do meu coração para o meu colo – o que é que eu
faço contigo?
Florianópolis, 08 de abril de 2009.
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora, doutora em Geografia pela
UFPR
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