(Para
Amanda Panambi[1],
que é filha da Luciane e do Aldo)
Das tantas línguas com quem se encontrou Cabeza de Vaca[2]
nas suas longas andanças pelo continente americano (só na região da América do
Norte onde hoje ficam Estados Unidos e México, de uma assentada só, caminhou
mais de 10.000
quilômetros), penso que a mais falada e soberana até hoje
seja a língua guarani, usada atualmente na Bolívia, Argentina, Brasil – mas, com
muito maior força e reconhecimento, no nosso vizinho
Paraguai.
Na primeira vez em que fui de verdade ao Paraguai (nós, brasileiros,
costumamos ir até a zona franca que fica entre Brasil e Paraguai, e depois
dizermos que fomos ao Paraguai – e ficarmos falando mal daqueles poucos
quilômetros cheios de quinquilharias, sem termos a menor noção da beleza que é
aquele país), depois de vários dias na belíssima cidade de Assunción, decidi
visitar uma região mais ao Noroeste, o estado Menonita. Conhecer a terra dos
Menonitas, só por si dá um livro, e então deixo para contar em outra
oportunidade. O que quero falar é da língua guarani, que tanto me espantara já
em Assunción.
O guarani é a primeira língua de um paraguaio, a língua que ele aprende
em casa, com a mãe. Mais adiante vai aprender o espanhol, mas desde os primeiros
balbucios e choros, um paraguaio os faz em guarani. Por muitos
dias ficara perambulando pelas ruas e praças de Assunción, bastante pasma ao
escutar o uso constante do guarani, e não só por pessoas com “jeito” de
paraguaias (se é que existe tal “jeito”) como também por gente evidentemente
estrangeira, como aqueles loirões modelo Hollywood que são gerentes de Bancos
Internacionais, etc. Nas livrarias, interessara-me profundamente pelos livros em
guarani, onde não consegui entender nenhuma palavra escrita, e onde comprei,
para um amigo que gosta de estudar línguas, um livro de lendas (em guarani,
claro!) e um dicionário Guarani/Espanhol.
Mas estava contando que acabei viajando para o tal estado Menonita, e na
rodoviária de Assunción, já instalada no ônibus, vi entrar nele três jovens e
lindas moças sem aquele “jeito” paraguaio ao qual já me referi acima – eram
muito loiras, pareciam-se mais com descendentes de europeus do sul do Brasil. Há
dias e dias sem ouvir o português, captei alguma palavra em português na fala
delas, e fui lá conversar. As moças era as famosas brasiguaias, que vinham de um
estado ao Nordeste do Paraguai, lugar onde vivem muitos brasileiros e seus
descendentes. Sim, tinham raízes no sul do Brasil, e falavam português, embora
com alguma dificuldade e algumas falhas. Como andava muito curiosa a respeito,
perguntei-lhes se falavam guarani. Elas me olharam como se eu tivesse dito uma
asneira – claro que falavam guarani! Quem não tinha aprendido em casa tinha
aprendido na escola – e então eu me espantei mais: a escola era em guarani?
Claro, a escola era em guarani, em que outra língua seria?
E estávamos nessa conversa, elas a contarem que estavam indo para o
estado Menonita para trabalharem, quando prestei atenção numa menina que estava
na rodoviária, do lado de fora do ônibus, sentada sobre uma alta mala. Teria
oito ou nove anos, e lia atentamente um colorido livro infantil cuja capa não
deixava dúvidas: era em guarani!
- Gente, olhem a menina, olhem a menina! Está lendo um livro infantil em
Guarani!
As três lindas moças me olharam como se eu fosse boba, e depois se
entreolharam. Acho que acharam que deveriam dar uma explicação ao ser humano sem
bom senso que eu era:
- E daí? Nossos livros infantis também eram em
guarani!
Aí fiquei quieta e feliz como não saberia explicar a elas. Pensei em
Cabeza de Vaca. Se ele soubesse que, quase cinco séculos depois, aquela língua
estaria completamente viva tanto nos livros infantis quanto nas universidades
paraguaias, o que diria ele aos seus sucessores que vieram munidos da cruz e da
espada para acabar com tudo o que não fosse cristão? Tendo lido um bocado sobre
Cabeza de Vaca, acho que ele ficaria bem feliz!
Até hoje estou pensando por que nos chamam de América e Latina! É tão
parco o latim nesta nossa terra de tantas línguas antigas!
Blumenau, 04 de junho de 2008.
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora, doutora em Geografia pela
UFPR.
[1] Panambi : (em guarani) =
borboleta
[2] Cabeza de Vaca: Nobre espanhol
que viveu muitas aventuras pelo continente americano, tendo naufragado, entre
outros naufrágios, na costa de Santa Catarina/Brasil, na metade do século XVI.
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