Temos um limite, no entanto. Já passando dos noventa ela foi atraiçoada
pelo tempo, e desde então está guardando leito lá naquele Hospital
Misericórdia que é como se fosse um pouco um lar. Fui vê-la, ontem, pensando
que talvez encontrasse uma velhinha alquebrada, derrubada pelas rasteiras da
vida e fiquei encantada ao encontrá-la. Frágil e fraquinha, os cabelos e a
pele de seda, as mãos como se fossem de delicado cristal, serena e tranquila,
ela continua sendo a linda princesa que sempre foi. Fiquei conversando
baixinho com ela enquanto a acariciava, dizendo-lhe coisas assim:
"Querida!
Como estás linda! Como sempre foste tão linda! Como eu te
amo!"
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Cronica da Urda - PRINCESA!!!
PRINCESA!!!
(Para Dona Lydia
Scheffler dos Santos)
Há que escrever agora, quando ainda tenho nas minhas mãos a tepidez das
suas faces, da sua testa que eu acarinhava ontem, quando também acarinhava as
suas mãos frágeis como se fossem de fino cristal, e que em algum momento
sentiram que eu estava ali a amá-la tanto e seguraram as minhas, naquele gesto
tão espontâneo de quem passou a vida a espargir o bem, o carinho, a ternura,
mãos de fada ou de princesa. Nunca pensei nela como rainha porque não me
agradam as rainhas: algumas são más, mandam fazer guerras ou outras maldades,
e Dona Lydia sempre foi tão cheia de bondade que o título que mais se adequava
a ela era o de princesa, pois, pelo menos nos contos de fadas, as princesas
são boas e lindas e têm seus príncipes, e era assim que ela era, uma princesa
cheia de dignidade e de amor, mãos estendidas para acolher e para fazer o bem,
braços abertos para proteger, coração pronto para compreender e para
amar.
Eu ainda era adolescente quando passei a comer seus sanduíches de bife
de fígado com pão de casa feito por ela mesma e a saber que ela existia como
um refúgio, e nessa altura ela já era mãe e avó e muitos anos nos separavam.
Passei a amá-la como mãe mesmo sem ela saber. Conhecemo-nos pessoalmente um
pouco mais tarde, quando vivíamos, as duas, grandes, imensas dores, e descobri
como nela havia aquela dignidade e aquela grandeza d’ alma que lhe eram
inatas, mesmo tendo o coração dilacerado pela partida de um dos seus
príncipes. A dor, no entanto, não lhe tirara as mãos estendidas, os braços
abertos, o coração pronto.
Um pouco depois partiu também o seu príncipe consorte, e ela se viu
obrigada a segurar sozinha as rédeas da sua emoção da carruagem da vida. Havia
toda uma corte a cercá-la, claro, os filhos, os netos e bisnetos, até uma
trinetinha nasceu e foi batizada com o seu nome, homenagem linda, coisas que
princesas recebem, mas seu arrimo maior, seu Príncipe Encantado se fora, e
como a vida deve lhe ter sido mais difícil ainda desde então! Nunca lhe
faltou, no entanto, sua dignidade de princesa e o carinho da sua gente, e foi
assim que ela não se vergou e caminhou agilmente pelas décadas
seguintes.
Ela dormiu a maior parte do tempo, mas às vezes me olhava de algum
lugar muito distante, e houve um momento em que segurou minha mão e ficou a
apertá-la com a sua poderosa força de princesa. Chorei muito, tamanha a
emoção.
Acordei hoje sonhando que ainda a acariciava e que ainda falava
baixinho com ela. Tive que vir escrever isto antes que a tepidez dela fugisse
das minhas mãos. Do meu coração, não fugirá.
Minha querida, minha princesa!
Blumenau, 17 de Novembro de 2013.
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR.
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cronicas e outros textos,
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