A BURGUESIA FEDE!
Eu não sabia que os amava tanto, até dois dias atrás. Nem sei muito direito como entraram na minha vida – penso que começamos a nos unir, de alguma forma, lá por 1985, em plena ditadura do governo Figueiredo, quando eu ainda pertencia a uma profissão que se podia dizer “inexistente”, a de “economiária”, isto é, eu não era nem bancária nem funcionária pública, mas trabalhava numa empresa pública que funciona como banco, a Caixa Econômica Federal, histórica instituição que nos veio com a Independência, e que naquelas alturas do século XIX se chamava de “Monte do Socorro”. Então em 1985 houve uma primeira greve de bancários, em Blumenau, e eu nem era bancária, mas fui ver tudo de perto, as Assembléias, o que acontecia no Sindicato que ainda não era meu – aquilo me despertava a maior curiosidade, e achava que tinha a obrigação de ir lá ver, ao menos como escritora. Se não me engano, em 1986 conseguimos, nós, economiários, que a justiça nos considerasse bancários, e então passamos a ter sindicato também, e as amizades foram se estreitando naquele novo mundo que num sindicato atuante se descortina.
O que me espanta é que muita gente que é meu amigo hoje sequer tinha nascido naqueles idos do meu alvorecer para outros olhares de mundo. O que sei é que a vida seguiu, e hoje, se tenho uma coisa preciosa na vida, é esse meu colar de amigos que sabe chorar junto quando fica sabendo que em Faluja foram destruídas 36.000 casas por bombardeios invasores (se você não sabe onde é Faluja, preste mais atenção no que acontece no SEU mundo!), que em Faluja e outros lugares do Iraque as pessoas são atacadas com a proibida arma química chamada fósforo branco, e viram caveiras dentro das suas roupas intocadas, porque o fósforo branco só atua sobre coisas que contenham água, como células humanas, por exemplo. Eu citei Faluja porque é uma das coisas que mais me horroriza, aquela cidade sacrificada ao algoz por mera brincadeirinha, onde até os médicos e os doentes do hospital foram bombardeados inapelavelmente, onde as pessoas ainda apodrecem sob seus escombros, nesta virada de ano para o 2006 d.C. Faluja é só um exemplo: e o Afeganistão, e Guantánamo, e a Palestina, e os cárceres secretos onde se tortura e se humilha em plena “civilizada” Europa, e as barbaridades acontecidas contra as minorias, e os rios que são salvos porque bispos com consciência decidem morrer por eles ... ah! Meu querido John Lennon, o sonho não acabou! Tenho o privilégio desse colar de amigos que ainda sabe chorar e sonhar, e que vai para o bar comemorar, de tanta felicidade, quando um índio aimara, quase pela primeira vez na História dos Índios, se elege presidente de um país! Evo Morales é como um símbolo para mim, para nós, símbolo de que os nossos sonhos podem ser sonhados, que não estamos errados, que os excluídos destinados à destruição (como diria Hitler: “à solução final”) sabem muito, e podem se organizar e reagir aos desmandos impiedosos de uma entidade chamada Capital, coisa recente no mundo, forma de viver que tem lá seus meros 250 anos, mas que é tão prepotente que faz com que a maioria dos seres humanos pensem que sempre se viveu assim...
Bem, eu comecei lá em cima dizendo que não sabia, até dois dias atrás, que os amava tanto, a esses meus amigos que hoje são como um precioso colar na minha vida – só que antes deles eu tinha uma outra turma, e por ironia, era a turma “que amava os Beatles e os Rolling Stones”, John Lennon que me perdoe! Um desses amigos antigos esteve, faz dois dias, lançando um livro aqui na minha cidade, e fui lá prestigiá-lo. Ainda não li o livro, ainda não opino sobre o livro ou sobre ele – o que quero falar é que, com a vinda dele, saiu da toca toda a velha guarda que amava os Beatles e os Rolling Stones, e num primeiro momento houve uma grande alegria ao revê-los, e abraços conforme iam chegando,e tentativas de fazer ressuscitar antigos tempos lá de quando John Lennon ainda era vivo – mas fui descobrindo que eles já não tem sonhos. Os caras que amavam os Beatles e os Rolling Stones, hoje, quase todos, são a burguesia. E nunca entendi tão de perto aquele curto verso de Cazuza: “A burguesia fede”. E essa burguesia já não sabe quem é Evo Morales, e se algum sabe fala dele não como uma possibilidade de promessa, mas como o bobo da corte que veio para ocupar algum espaço que o Capital esperava para se solidificar mais. Os sonhos deles acabaram e eles fedem. E um dia tinham sido meus amigos e tínhamos sonhado juntos. Ainda nem consigo entender, e saí de lá de alma machucada e com medo de feder como eles.
Por sorte, tenho os amigos de hoje, e eles não deixaram morrer os sonhos. E até dois dias atrás eu não sabia que os amava tanto! Já não saberia viver sem eles! É bom, é muito bom, assim numa beirada do Natal, descobrir tal tipo de coisa!
Blumenau, 22 de Dezembro de 2005.
Urda Alice Klueger
Escritora
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