sexta-feira, 26 de julho de 2013

Crônica da Urda - Evo, disseram que índio não tem alma.




                                   Evo, disseram que índio não tem alma.

                                   (Para Evo Morales Ayma)

                                   Evo vinha no avião (O que me faz lembrar: vovó viu a uva), mas muitos outros aviões, decerto, naquele momento também voavam de leste para oeste, do nordeste do mundo para diversos pontos mais ao sul e deveriam passar sobre aqueles países que antes a gente achava que eram independentes e até grandiosos, como a França, pátria de conjunto de palavras como “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Tinha havido um encontro de países exportadores de gás em Moscou e os governantes voltavam. Dentre eles, Evo, o presidente índio. Sua equipe tinha feito tudo certinho, assim como as outras equipes dos outros aviões: trajeto de voo, licenças para voar, cálculos de combustível...
                                   Então olho aqui para o mapa e vejo: para quem saíra do aeroporto de Moscou e voava em direção da América do Sul, era necessário passar sobre alguns países, a começar pela França – poderia haver desvios, claro, ou passando sobre o Oriente Médio, ou passando pela gelada Escandinávia. O plano de voo e as licenças, no entanto, eram para o caminho mais curto e mais reto para se chegar em casa, para chegar a esta minha amada América, e era por ali que Evo vinha no avião com sua equipe de trabalho. Foi então que aconteceu o que me deixou e deixou a maior parte do mundo de queixo caído: a França fechou o espaço aéreo para o avião de Evo. E em seguidinha, também Portugal, Espanha e Itália o fizeram! Olhando aqui no mapa, a coisa fica bem clara: foi como fechar um porteirão no ar, dizer assim:
                        - Cai logo, desgraçado, te incendeia, morre! Quem quer um índio em cargo de mando, quem te mandou se atrever a tanto?
                                   E Evo vinha no avião e o avião já não tinha por onde passar, e o combustível ia baixando, baixando... Por sorte, antes que o combustível se acabasse, a Áustria permitiu que lá baixasse o avião de Evo, onde ele permaneceu por quase 14 horas, humilhado tanto quanto se conseguiu, esperando de novo as autorizações que já lhe tinham sido dadas antes para poder seguir para casa. O pretexto informado foi que Evo traria a bordo aquele adorável garoto chamado Snowden, que passou a maior rasteira nos serviços de espionagem do grande Império, fazendo que o grande público entendesse que já não se podia mandar um beijo para a namorada sem o risco de ir parar em Guantánamo, sem julgamento e sem chances – pessoas mais bem informadas sabiam de tal coisa há muuuuito tempo. A maior parte das 14 horas ficaram por conta da Espanha, com seu reizinho porquera (aquele que é presidente espanhol da WWF, certa ONG que protege os animais e o meio ambiente – ele, o rei,  gasta o tempo caçando elefantes na África. Tenho foto dele, cheio de empáfia, pousando sobre um elefantão mortinho da silva, a tromba torcida pela agonia), uma Espanha que ainda não se conformou por ter perdido o grande manancial de prata que vinha de Potosi[1] nem os milhões de escravos índios que podiam ser torturados à vontade[2], e que fez o avião de Evo esperar até o outro dia, até os escritórios abrirem no seu horário normal, para decidir se um índio podia voar pelos seus céus ou não.         
                                   Meus colegas escritores já muito analisaram o que aconteceu na ocasião, como os EUA[3] deitaram e rolaram usando suas novas colônias européias para humilhar a um presidente progressista da América dita Latina, e fiquei feliz por ver as tantas coisas bem escritas que foram feitas naqueles dias em que eu não podia escrever, e também eu cá pensei diversas coisas sobre o assunto, como as necessidades de um império falido e seus asseclas falidos, e a continuação da doutrina Monroe, e a forma como o condor do Plano Condor anda por aí voando de novo[4], mas só vi pouquinhas vezes  uns poucos tocarem em certo ponto doloroso do caso: o racismo.
                                   Era uma porção de aviões voando, e era uma porção de chefes de estado que partiram de Moscou – por que foi sobrar logo para Evo?
                                   Não se esqueça, meu amigo, que tem gente, e é muita, até aí ao seu ladinho, bem pertinho de você, que não aceita de jeito nenhum que um índio possa ser gente! A própria Igreja não ficou garantindo, por três séculos e meio, que índio não tem alma? Até hoje tem turista europeu que anda aqui pelo Brasil falando na sua língua sobre os “macacos” do nosso país (uma amiga minha, poliglota, ouviu tal bem ouvidinho, num passeio em Porto Seguro) – como aceitar que, provavelmente com alma, um índio possa até ser presidente de um país? Tal coisa está atravessada na garganta de muita gente. Então, ao invés de dar espetáculo com qualquer dos aviões que vinham de Moscou, o Império e suas novas colônias não tiveram dúvida: pau no índio! Fechem o espaço aéreo dele, deixem que acabe o combustível do avião dele, que se exploda tal criatura sem alma que se atreve a ser tanto, a até dar palmadinhas nas costas do porquera do rei de Espanha, como já o fez uma vez, quando se esperava que fizesse a reverência própria dos escravos!
                                   Evo, meu companheiro Evo, meu querido Evo, muda de rota, não dá mais chances ao Império para te usar como bode expiatório na hora de mostrar que ainda têm algumas garras, embora sua juba e seus rosnados já tenham decaído irremediavelmente! Nós te queremos conosco, vivo e são, para construirmos a América de que precisamos. E se te faz bem saber, digo-te que em meu coração tu estás como o meu irmão que és, e que se tiver a chance, te defenderei até a morte.

                                               Blumenau, 21 de julho de 2013.
                                              
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

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