Evo, disseram que índio não tem
alma.
(Para Evo Morales Ayma)
Evo vinha no
avião (O que me faz lembrar: vovó viu a uva), mas muitos outros aviões, decerto,
naquele momento também voavam de leste para oeste, do nordeste do mundo para
diversos pontos mais ao sul e deveriam passar sobre aqueles países que antes a
gente achava que eram independentes e até grandiosos, como a França, pátria de
conjunto de palavras como “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Tinha havido um
encontro de países exportadores de gás em Moscou e os governantes voltavam.
Dentre eles, Evo, o presidente índio. Sua equipe tinha feito tudo certinho,
assim como as outras equipes dos outros aviões: trajeto de voo, licenças para
voar, cálculos de combustível...
Então olho aqui para o mapa e vejo: para quem saíra do aeroporto de
Moscou e voava em direção da América do Sul, era necessário passar sobre alguns
países, a começar pela França – poderia haver desvios, claro, ou passando sobre
o Oriente Médio, ou passando pela gelada Escandinávia. O plano de voo e as
licenças, no entanto, eram para o caminho mais curto e mais reto para se chegar
em casa, para chegar a esta minha amada América, e era por ali que Evo vinha no
avião com sua equipe de trabalho. Foi então que aconteceu o que me deixou e
deixou a maior parte do mundo de queixo caído: a França fechou o espaço aéreo
para o avião de Evo. E em seguidinha, também Portugal, Espanha e Itália o
fizeram! Olhando aqui no mapa, a coisa fica bem clara: foi como fechar um
porteirão no ar, dizer assim:
- Cai logo, desgraçado, te incendeia, morre! Quem quer um índio em cargo
de mando, quem te mandou se atrever a tanto?
E Evo vinha no avião e o avião já não tinha por onde passar, e o
combustível ia baixando, baixando... Por sorte, antes que o combustível se
acabasse, a Áustria permitiu que lá baixasse o avião de Evo, onde ele permaneceu
por quase 14 horas, humilhado tanto quanto se conseguiu, esperando de novo as
autorizações que já lhe tinham sido dadas antes para poder seguir para casa. O
pretexto informado foi que Evo traria a bordo aquele adorável garoto chamado
Snowden, que passou a maior rasteira nos serviços de espionagem do grande
Império, fazendo que o grande público entendesse que já não se podia mandar um
beijo para a namorada sem o risco de ir parar em Guantánamo, sem julgamento e
sem chances – pessoas mais bem informadas sabiam de tal coisa há muuuuito tempo.
A maior parte das 14 horas ficaram por conta da Espanha, com seu reizinho
porquera (aquele que é presidente espanhol da WWF, certa ONG que protege os
animais e o meio ambiente – ele, o rei, gasta o tempo caçando elefantes na
África. Tenho foto dele, cheio de empáfia, pousando sobre um elefantão mortinho
da silva, a tromba torcida pela agonia), uma Espanha que ainda não se conformou
por ter perdido o grande manancial de prata que vinha de Potosi[1] nem os milhões de escravos índios que podiam ser torturados à
vontade[2], e que fez o avião de Evo esperar até o outro dia, até os
escritórios abrirem no seu horário normal, para decidir se um índio podia voar
pelos seus céus ou não.
Meus colegas escritores já muito analisaram o que aconteceu na ocasião,
como os EUA[3] deitaram e rolaram usando suas novas colônias européias para
humilhar a um presidente progressista da América dita Latina, e fiquei feliz por
ver as tantas coisas bem escritas que foram feitas naqueles dias em que eu não
podia escrever, e também eu cá pensei diversas coisas sobre o assunto, como as
necessidades de um império falido e seus asseclas falidos, e a continuação da
doutrina Monroe, e a forma como o condor do Plano Condor anda por aí voando de
novo[4], mas só vi pouquinhas vezes
uns poucos tocarem em certo ponto doloroso do caso: o
racismo.
Era uma porção de aviões voando, e era uma porção de chefes de estado que
partiram de Moscou – por que foi sobrar logo para Evo?
Não se esqueça, meu amigo, que tem gente, e é muita, até aí ao seu
ladinho, bem pertinho de você, que não aceita de jeito nenhum que um índio possa
ser gente! A própria Igreja não ficou garantindo, por três séculos e meio, que
índio não tem alma? Até hoje tem turista europeu que anda aqui pelo Brasil
falando na sua língua sobre os “macacos” do nosso país (uma amiga minha,
poliglota, ouviu tal bem ouvidinho, num passeio em Porto Seguro) – como aceitar
que, provavelmente com alma, um índio possa até ser presidente de um país? Tal
coisa está atravessada na garganta de muita gente. Então, ao invés de dar
espetáculo com qualquer dos aviões que vinham de Moscou, o Império e suas novas
colônias não tiveram dúvida: pau no índio! Fechem o espaço aéreo dele, deixem
que acabe o combustível do avião dele, que se exploda tal criatura sem alma que
se atreve a ser tanto, a até dar palmadinhas nas costas do porquera do rei de
Espanha, como já o fez uma vez, quando se esperava que fizesse a reverência
própria dos escravos!
Evo, meu companheiro Evo, meu querido Evo, muda de rota, não dá mais
chances ao Império para te usar como bode expiatório na hora de mostrar que
ainda têm algumas garras, embora sua juba e seus rosnados já tenham decaído
irremediavelmente! Nós te queremos conosco, vivo e são, para construirmos a
América de que precisamos. E se te faz bem saber, digo-te que em meu coração tu
estás como o meu irmão que és, e que se tiver a chance, te defenderei até a
morte.
Blumenau, 21 de julho de 2013.
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR
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