sábado, 6 de junho de 2009

O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS





O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS
- Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30

Boris Fausto


Páginas 264


Trecho de O Crime do Restaurante Chinês, de Boris Fausto

Capítulo 1
As vítimas e a São Paulo dos Imigrantes

Ho-Fung viera da China em 1926, cruzando oceanos, para encontrar a morte violenta em São Paulo. Antes dele chegara a São Paulo seu primo, Antônio Akui, que, sabedor de suas dificuldades, lhe forneceu passagem e colocação em um restaurante, de propriedade de João Akiau Ching, seu futuro cunhado. Ho-Fung veio acompanhado de João Ho Det Men, que foi trabalhar em outro restaurante, o da rua Wenceslau Braz número 13, de propriedade de Akui na ocasião.

Alguns anos após sua chegada ao Brasil, através de João Akiau, Ho-Fung conheceu a irmã deste, Maria Akiau Ching. Era brasileira, filha de chineses que tinham morado inicialmente no Rio de Janeiro, depois em Araraquara, no interior do Estado, transferindo-se por fim para a capital paulista em 1932. Ho-Fung e Maria passaram do conhecimento ao namoro, e se casaram em 1933.

Nesse ano ocorreu a morte da mãe de Maria, que deixou uma pequena herança - uma casa em Araraquara, vendida pelos nove filhos herdeiros. Foi com o dinheiro dessa herança que o casal instalou seu restaurante na rua Wenceslau Braz número 13, aproveitando uma boa oportunidade; o local ficara vago, pois o primo de Ho-Fung, Antônio Akui, jogador inveterado, levara o antigo restaurante à falência.

A família de Maria Akiau fazia um continuado esforço de integração no país. Seus membros se converteram ao catolicismo e optaram pela utilização de primeiros nomes usuais no Brasil, formando combinações curiosas, como a do nome do patriarca - Joaquim Akiau Ching. O fato de o "mercado matrimonial" intraétnico ser muito reduzido para os chineses também concorreu para que os filhos e filhas do casal imigrante Joaquim e Maria tendessem a casar com brasileiros, italianos, espanhóis. O casamento da filha Maria Akiau com Ho-Fung foi, assim, uma exceção.

Em mais um claro indício de inserção no meio brasileiro, a família Akiau mandou celebrar missa de sétimo dia, na Igreja do Convento de São Francisco, convidando parentes e amigos através de anúncio em O Estado de S. Paulo, de consideráveis proporções. Nele figura um anjo, de asas bem maiores do que o corpo, ajoelhado diante de uma coluna partida, como símbolo a um tempo banal e expressivo de vidas truncadas muito cedo.

Não convém, entretanto, estender a outras situações a integração da família Akiau à terra a que haviam chegado como emigrantes. Em geral, era difícil para os chi- neses adaptar-se aos costumes brasileiros, comunicar-se ou garatujar uma simples assinatura em caracteres latinos, tanto mais que, via de regra, eram pessoas de instrução elementar. Mesmo assim, faziam um esforço para se acomodar ao meio brasileiro, porque, se tinham chegado ao país com desejos de retorno, tal como ocorria com os japoneses, sabiam que o retorno integrava um horizonte distante. Poucos chegaram a atingi--lo e a grande maioria aqui ficou, seja por falta de recursos, seja porque as turbulências no país de origem desaconselhavam a volta. Tentavam aprender, bem ou mal, a língua portuguesa - não por acaso havia um dicionário no cofre de Ho-Fung -, pois, entre outros fatores, a língua era um instrumento valioso para atender os clientes de seus negócios. Negócios que giravam não só em torno dos restaurantes, formando uma rede nutrida pelo parentesco e pelas amizades, mas também dos pastéis vendidos nas feiras livres, sempre acompanhados de caldo de cana, e esfumaçadas tinturarias.

A colaboração de Maria Akiau nas atividades do estabelecimento da rua Wenceslau Braz não se limitou à contribuição financeira inicial. Tanto quanto o marido, ela tinha experiência anterior na gerência de restaurantes chineses, que a família ou compatriotas abriam e às vezes fechavam. Juntos - era opinião geral - estavam se saindo muito bem nos negócios. Para que o restaurante prosperasse, o público frequentador não podia se limitar à comunidade chinesa. Graças ao preço e à introdução de alguns pratos mais condizentes com o gosto dos paulistanos, Ho-Fung e Maria aos poucos atraíram uma clientela de empregados de escritórios, principalmente de advogados, estabelecidos na praça da Sé e adjacências, dada a proximidade com o Palácio da Justiça.

Mas mesmo antes da expansão do restaurante há indícios de boa condição do casal. Numa fotografia do casamento - por certo um momento excepcional que fugia à rotina -, Ho-Fung ostenta um smoking escuro, camisa branca de colarinho engomado e gravata-borboleta. Maria traja um longo vestido de noiva, cuja saia branca se espraia pelo chão e segura nas mãos um ramalhete de flores. Uma grinalda completa o arranjo. Os dois parecem muito sérios, não obstante tratar- -se de um momento de júbilo em suas vidas. Essa foto de uma cerimônia privada, comum a tantos outros casais, tornou-se pública por força do que aconteceria depois. E quem a contempla hoje, estampada nas páginas amarelecidas de um jornal, depois de ter visto as cenas da chacina constantes do processo do crime, tende a fundir o smoking escuro, a camisa branca, os colarinhos engomados, a gravata-borboleta, a grinalda, as flores, o vestido de noiva com as imagens dos dois corpos inertes - um estendido no cimento de um corredor escuro, em meio a trapos e garrafas vazias; o outro, estatelado no chão, ao lado da cama de casal, os bastos cabelos espalhados à sua volta.

Na década de 1930, São Paulo já não era a "cidade italiana" do início do século, e sim um centro urbano, com cerca de 1,3 milhão de habitantes, em que emigrantes da Europa e da Ásia se misturavam aos velhos paulistanos e aos cabeças- -chatas, como eram chamados depreciativamente os trabalhadores que começavam a chegar do Nordeste em grande número. Nessa paisagem humana, os chineses constituíam um grupo diminuto, representado por não mais do que duzentas pessoas, quase todas provenientes da província de Cantão. Esse quadro poderia ter sido muito diverso se o ponto de vista dos defensores da introdução dos "chins" no Brasil, principalmente para substituir o trabalho escravo na cafeicultura paulista, tivesse sido vitorioso, no acre debate que se travou sobre o tema nas últimas décadas do século xix. Contra a opinião favorável à vinda dos chineses, por serem mão de obra mais barata e supostamente mais dócil do que a proveniente da Europa, prevaleceu a visão em tudo oposta. Os "coolies" - trabalhadores sem nenhuma especialização -, no imaginário dos adversários, eram homens corruptos por natureza, eivados de maus costumes, narcotizados física e moralmente pelo ópio, incapazes de suportar o trabalho braçal. Desse modo, até meados do século xx, a emigração chinesa para o Brasil foi muito residual, ficando à margem das grandes vagas emigratórias que partiram da China para o Canadá, os Estados Unidos, o Peru e Cuba.3

O fato de São Paulo ter se tornado uma cidade multiétnica não significava que seus habitantes chegassem a absorver da mesma forma as várias etnias imigrantes. Uma coisa eram os italianos, espanhóis ou portugueses, que podiam ser objeto de estereótipos, de chistes, gerados tanto pela antiga população paulistana quanto por um grupo étnico tratan- do de desqualificar o outro, mas se sentiam pertencentes à cidade. Outra coisa era gente como os "amarelos", vistos como seres exóticos e distantes.

O cinema americano contribuiu para potenciar a imagem negativa dos chineses. O típico exemplo da suprema maldade, do "perigo amarelo" encarnado num único homem, foi o dr. Fu Manchu, criado por um romancista inglês, Sax Rohmer. Ao publicar as primeiras histórias, Rohmer descreveu o insidioso dr. Fu Manchu como uma pessoa alta, magra e felina, de ombros salientes, com sobrancelhas semelhantes às de Shakespeare e uma face de Satã, crânio raspado, olhos magnéticos e alongados, de um verde de olhos de gato. O dr. Fu Manchu personificava a astúcia cruel de toda a raça asiática, acumulada em um intelecto gigante, com todos os recursos da ciência do passado e do presente, "o perigo amarelo encarnado em um único homem". Mestre do crime, o personagem desdenhava de revólveres e explosivos, utilizando membros de sociedades secretas, armados de facas, cobras peçonhentas, fungos e bacilos, aranhas negras, armas químicas, para praticar seus crimes. Em compensação, o detetive sino-americano Charlie Chan, por um tempo a serviço da polícia no Havaí, era muito mais esperto do que os policiais brancos na apuração de crimes misteriosos, apesar dos gestos lentos e do inglês com forte sotaque. Os filmes de Fu Manchu e de Charlie Chan foram exibidos em São Paulo e outras cidades brasileiras nas décadas de 1930 e 1940, atraindo sempre grande público.

O LIVRO

Em O crime do restaurante chinês, o historiador Boris Fausto recorre aos arquivos da história e da memória pessoal para narrar e analisar um dos acontecimentos policiais que mais mobilizaram a opinião pública paulistana. Ele era um menino quando, logo depois de um animado carnaval de rua, a cidade não falava de outra coisa: um homem negro era acusado de matar o ex-patrão e mais três pessoas com terríveis golpes de pilão.
O historiador narra o processo das investigações com a maestria de um romancista. O enredo lhe serve de mote para discutir vários temas cruciais para a historiografia do período. Um deles é a relação entre migrantes, imigrantes e trabalhadores marginalizados numa São Paulo cada vez mais populosa. Outro é a aplicação judicial e policial de doutrinas racistas, que então recebiam o endosso de cientistas de prestígio, e ajudaram a incriminar Arias de Oliveira, jovem negro do interior, ex-empregado do restaurante. Fausto comenta também o declínio do carnaval de rua paulistano, e, depois, a comoção futebolística que tomou conta da cidade com a participação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938. As fontes dessa reconstrução do passado são basicamente a memória do autor e os vários jornais e órgãos de imprensa que mobilizavam a opinião pública, muitas vezes com sensacionalismo.
A análise de Fausto ajuda o leitor a perceber o "fio da sensibilidade" que ligava o carnaval, os assassinatos hediondos e a Copa do Mundo. Por meio dele, seria possível até que a figura antes temida de Arias terminasse associada à do adorado Leônidas, outro brasileiro negro, goleador da seleção nacional nos campos da França.

O AUTOR


Boris Fausto
Nasceu em 1930, em São Paulo. É historiador e professor do Departamento de Ciência Política da USP. Vencedor de dois prêmios Jabuti, prepara agora uma biografia de Getúlio Vargas, além do volume 2 do livro Negócios e ócios.

Obras publicadas por outras editoras:
- Trabalho urbano e conflito social. São Paulo, Difel, 1975.
- Crime e cotidiano. São Paulo, Brasiliense, 1984.
- História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1994.

Obras traduzidas no exterior:
- A concise history of Brazil. Inglaterra, Cambridge University Press, 1999.

Obras do autor publicadas pela Companhia das Letras

O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS

GETÚLIO VARGAS

NEGÓCIOS E ÓCIOS

A REVOLUÇÃO DE 1930

LANÇAMENTO







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