- Uma história da Igreja católica no Brasil
de Kenneth P. Serbin
Páginas - 448
Padres, celibato e conflito social é uma história da Igreja católica no Brasil vista sob o prisma dos padres. A Igreja é um dos eixos fundamentais da política e da vida social brasileiras. Os padres, agentes da instituição eclesiástica, sujeitos a pressões e influências de diversas fontes (da elite, do povo, do Vaticano e de sua própria consciência), constituem rico material de pesquisa sobre como a ação da Igreja se dá.
Serbin destaca especialmente a formação de padres no Brasil. Ao analisar os papéis sociais, o poder econômico e as origens étnicas do clero na era colonial, por exemplo, ressalta o impacto social da atividade missionária da Igreja, seu apoio ao escravagismo e à repressão da cultura indígena e africana.
Abrange, também, períodos de crise, em que vários padres tornaram-se revolucionários, e outros mais amenos, com a romanização da Igreja, o afastamento de padres da política e a proliferação de seminários (de 12 para mais de 600). Apoiado em farta documentação e rica pesquisa histórica, Serbin analisa todos esses períodos em uma narrativa intensa e envolvente, que lhe valeu o Book Prize of the Brazil Section of The Latin American Studies Association.
"O novo livro de Serbin é extraordinário [...] Uma bem-vinda contribuição para a história do Brasil e da Igreja católica na América Latina." - American Historical Review
Leia um trecho do livro
A vocação para o sacerdócio católico incorpora a mais generosa aspiração e as mais profundas contradições do ser humano. Ao longo da história, padres buscaram maior proximidade com Deus para si mesmos e para seu rebanho e se empenharam em construir uma sociedade justa. Para os católicos, o padre é o caminho da salvação. Para os não-católicos, ele simboliza a proeminência da Igreja como instituição religiosa, política e social. Os padres possuem a capacidade especial de "ter uma visão construtiva da natureza do homem", escreveu o padre sociólogo Andrew Greeley. Educados em uma tradição que remonta aos primórdios da civilização ocidental, eles são um repositório da ética judaico-cristã. Mas em nome de Deus empreenderam algumas das mais brutais campanhas contra idéias, povos e indivíduos. Os padres devem personificar o divino embora habitem um corpo imperfeito. Exige-se que expressem a mais elevada forma de amor e que neguem os impulsos básicos do prazer sexual, do conforto e da liberdade. Essas condições unem os padres em uma misteriosa irmandade internacional. Como uma tragédia grega, a história do sacerdócio fala de temas humanos fundamentais.
Este livro é uma história social e cultural do clero no Brasil, um país vasto e intensamente religioso, formalmente a maior nação católica do mundo, mas, na realidade, um viveiro de práticas religiosas as mais diversas. Acompanharemos aqui cinco séculos de continuidade e mudança na vida do clero, com enfoque nos seminários, as escolas onde jovens, apenas do sexo masculino, isolam-se do mundo a fim de preparar-se para o ministério ordenado da Igreja católica romana. Analisaremos questões relacionadas a etnicidade, gênero, política e economia. Tão importante quanto estas é a religião, influência dominante na longa história das civilizações. Os papéis sociais dos padres e o modo como os clérigos enfrentaram as exigências de sua condição especial são os principais temas desta obra.
Minha inspiração para escrever este livro veio em 1986, quando estive no Brasil pela primeira vez e soube que Roma condenara o frade franciscano Leonardo Boff, famoso teólogo da libertação, a um ano de silêncio devido à sua polêmica crítica ao poder na Igreja. A Igreja brasileira também lamentava, na época, o assassinato do padre Jósimo Morais Tavares, morto em maio de 1986 por ter ajudado os pobres na luta contra os poderosos latifundiários da Amazônia. A descoberta da teologia da libertação e do ativismo clerical renovou minhas raízes católicas. Quando ouvi padres censurarem as iniqüidades sociais durante a primeira campanha eleitoral no Brasil pós-ditadura, pensei comigo: "É isso que a Igreja devia estar fazendo em todo lugar!". A Igreja brasileira contrastava gritantemente com a conformista Igreja americana, cuja atenção se voltava para uma classe média que, acabada a missa, corria para o estacionamento e embarcava em seu carro novo em vez de refletir sobre a renovação de sua vida com Deus. O que presenciei no Brasil levou-me a fazer da Igreja o tema de minha tese de doutorado em história da América Latina, defendida na Universidade da Califórnia em San Diego.
Iniciei minhas pesquisas no Rio de Janeiro em uma tarde amena do inverno de 1987. Fui conhecer um dos mais notáveis clérigos brasileiros, o padre Marcello de Carvalho Azevedo, intelectual jesuíta cujo influente livro sobre a fé, a cultura e as renomadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) acabara de ser publicado em inglês. As CEBs emergiram na década de 1970, quando a Igreja lutava pelo fim da ditadura militar no Brasil. O padre Marcello recebeu-me com seu largo sorriso característico e, em cerca de uma hora, sem consultar anotações, esboçou verbalmente quatro possíveis temas para uma tese. Um deles, a formação de padres em seminários diocesanos, não fora estudado sistematicamente por nenhum historiador ou cientista social. "Você pode-rá prestar um grande serviço à Igreja brasileira se fizer um estudo sobre os seminários", ele me disse.
O padre Marcello acolheu-me em seu escritório no bairro de Botafogo, um dos mais interessantes microcosmos da vida brasileira moderna. Não muito distante do centro do Rio, Botafogo abrigava uma das maiores concentrações da intelectualidade latino-americana. O padre Marcello e outros pensadores influentes da Igreja progressista trabalhavam no Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES). Essa instituição era composta por um influente grupo jesuíta de estudos interdisciplinares que formara toda uma geração de militantes católicos. Em 1970 agentes do regime militar haviam invadido o IBRADES, um ato que quase levou à ruptura da histórica relação entre Igreja e Estado. A poucos passos situava-se o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, onde pesquisadores chefiados pelo ex-militante católico Herbert de Souza (Betinho) organizaram um movimento nacional de combate à pobreza na década de 1990. Após as apresentações formais, o padre Marcello e eu fizemos uma rápida caminhada pela rua São Clemente. Outrora ornada com elegantes residências da nobreza imperial brasileira do século XIX, época em que Botafogo era uma idílica periferia da cidade, essa rua hoje fervilha de carros, pedestres e consumidores, muitos deles moradores de prédios. A alguns metros na mesma rua encontramos o centro cultural conhecido como Casa de Rui Barbosa, onde morara o grande jurista, acadêmico, estadista e abolicionista brasileiro. Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo mundialmente renomado e presidente do Brasil de 1995 a 2003, cresceu em Botafogo. O padre Marcello indicou-me o Colégio Santo Inácio, escola preparatória jesuíta que educou muitos membros da elite masculina do Brasil.Mais à frente encontrava-se o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), fundado por Candido Mendes, o brilhante bisneto do senador que defendeu a Igreja contra a intrusão do Estado na década de 1870. O IUPERJ localizava-se no centro de Botafogo, na rua da Matriz, que liga a São Clemente a outra principal via do bairro. Uma igreja de pedra assoma impassível no fim da rua da Matriz, e quem se vira para o lado da São Clemente vê os morros e o Corcovado, onde a estátua do Cristo Redentor abre os braços num gesto benevolente mas distante para o povo do Rio.
A vida sofre drástica mudança na encosta do morro, precariamente ocupado pela favela Dona Marta. A comunidade, que seus moradores chamam de Santa Marta, nome cunhado por um padre jesuíta, ganhou na década de 1980 em todo o país a péssima reputação de ser um antro dos narcotraficantes e seus capangas. Em 1996 tornou-se um símbolo da violência e das tensões entre o Primeiro e o Terceiro Mundo quando o cantor Michael Jackson e o produtor de cinema Spike Lee filmaram no local um polêmico videoclipe. Alguns políticos brasileiros opuseram-se às filmagens, e Lee teve de pagar ao chefão do tráfico para poder trabalhar em segurança. Nesse mesmo ano o diretor brasileiro Murilo Salles fez um aclamado e trágico filme baseado nas crianças dessa favela, intitulado Como nascem os anjos. Aliando o refinamento cosmopolita à luta de classes, Botafogo e Santa Marta refletem as contradições do subdesenvolvimento pós-moderno.
O padre Marcello atribuiu essa situação à opressão estrangeira. Apontou para os ônibus barulhentos que subiam a São Clemente arrotando diesel poluente. A classe média evitava andar neles. Não passavam de caminhões de transporte adaptados, com bancos desconfortáveis e uma catraca rudimentar e ruidosa. Pareciam destinar-se ao transporte de animais. Os moradores da Santa Marta resignavam-se a passar a vida viajando naqueles veículos de casa para o trabalho. "Veja o que as multinacionais fazem aqui no Brasil", disse o padre Marcello. "Deixam sua pior tecnologia para os países pobres."
Nosso encontro resolveu algumas de minhas questões principais. O padre Marcello não só me ajudou a tomar uma decisão fundamental para minha carreira, mas, além disso, me incumbiu de uma importante missão. No Brasil a Igreja realmente era importante e, a julgar por indivíduos como o padre Marcello, parecia verdadeiramente se preocupar com o povo.Meu trabalho seria muito mais do que um exercício acadêmico. Eu me aventuraria pela fé, pela política e pela luta em prol da mudança social.
Mas um estudo dos seminários teria de abordar mais do que as preocupações predominantemente políticas expressas na maioria dos textos sobre a Igreja católica latino-americana contemporânea. Em meu contato com o padre Marcello eu já observara que a vida do clero brasileiro envolvia demandas complexas e às vezes contraditórias. Por exemplo, ele pertencia ao clero religioso (ou regular). Esses padres são agrupados em ordens, podem servir em qualquer parte do mundo e atuam subordinados a um bispo apenas se servirem formalmente em uma diocese, a principal divisão territorial da Igreja. No entanto, o padre Marcello recomendou que eu estudasse os padres diocesanos (ou seculares), que geralmente passam toda a carreira subordinados ao bispo local. De início, decidi concentrar-me apenas na formação dos padres diocesanos. Mas no Brasil os jesuítas e outras ordens haviam assumido boa parte da responsabilidade pela formação dos padres diocesanos. Surgiram rivalidades entre os padres religiosos e seculares, e também entre as várias ordens que vieram da Europa para o Brasil. Em especial, emergiram tensões em torno das linhas de identidade nacional. Por isso, meu estudo expandiu-se para incluir uma pesquisa sobre os religiosos. Foi além dos seminários e buscou uma visão geral do clero e de outros temas, como a religião popular e a estrutura da Igreja institucional. Embora a princípio eu pensasse em analisar apenas o período pós-Segunda Guerra Mundial, logo ficou claro que não seria possível explicar os seminários sem retornar à era colonial.
As dificuldades dos padres com o celibato tornaram-se parte inevitável de minhas pesquisas. Descobri o lado pessoal das coisas quando procurava pelo núcleo da teologia da libertação entre os padres militantes da Baixada Fluminense, o tórrido e apinhado complexo de subúrbios operários do Rio de Janeiro. Escrevendo sobre esses homens, e às vezes até ajudando-os, vi como eles mergulharam nas disputas políticas do novo regime democrático brasileiro e por isso foram vitimados pela opressão de burocratas da Igreja, ameaçaram o conforto pecuniário de seus inimigos clericais e contestaram o modelo clássico de sacerdócio.
[...]
UM LANÇAMENTO DA
Serbin destaca especialmente a formação de padres no Brasil. Ao analisar os papéis sociais, o poder econômico e as origens étnicas do clero na era colonial, por exemplo, ressalta o impacto social da atividade missionária da Igreja, seu apoio ao escravagismo e à repressão da cultura indígena e africana.
Abrange, também, períodos de crise, em que vários padres tornaram-se revolucionários, e outros mais amenos, com a romanização da Igreja, o afastamento de padres da política e a proliferação de seminários (de 12 para mais de 600). Apoiado em farta documentação e rica pesquisa histórica, Serbin analisa todos esses períodos em uma narrativa intensa e envolvente, que lhe valeu o Book Prize of the Brazil Section of The Latin American Studies Association.
"O novo livro de Serbin é extraordinário [...] Uma bem-vinda contribuição para a história do Brasil e da Igreja católica na América Latina." - American Historical Review
Leia um trecho do livro
1. Introdução - O significado do sacerdócio
A vocação para o sacerdócio católico incorpora a mais generosa aspiração e as mais profundas contradições do ser humano. Ao longo da história, padres buscaram maior proximidade com Deus para si mesmos e para seu rebanho e se empenharam em construir uma sociedade justa. Para os católicos, o padre é o caminho da salvação. Para os não-católicos, ele simboliza a proeminência da Igreja como instituição religiosa, política e social. Os padres possuem a capacidade especial de "ter uma visão construtiva da natureza do homem", escreveu o padre sociólogo Andrew Greeley. Educados em uma tradição que remonta aos primórdios da civilização ocidental, eles são um repositório da ética judaico-cristã. Mas em nome de Deus empreenderam algumas das mais brutais campanhas contra idéias, povos e indivíduos. Os padres devem personificar o divino embora habitem um corpo imperfeito. Exige-se que expressem a mais elevada forma de amor e que neguem os impulsos básicos do prazer sexual, do conforto e da liberdade. Essas condições unem os padres em uma misteriosa irmandade internacional. Como uma tragédia grega, a história do sacerdócio fala de temas humanos fundamentais.
Este livro é uma história social e cultural do clero no Brasil, um país vasto e intensamente religioso, formalmente a maior nação católica do mundo, mas, na realidade, um viveiro de práticas religiosas as mais diversas. Acompanharemos aqui cinco séculos de continuidade e mudança na vida do clero, com enfoque nos seminários, as escolas onde jovens, apenas do sexo masculino, isolam-se do mundo a fim de preparar-se para o ministério ordenado da Igreja católica romana. Analisaremos questões relacionadas a etnicidade, gênero, política e economia. Tão importante quanto estas é a religião, influência dominante na longa história das civilizações. Os papéis sociais dos padres e o modo como os clérigos enfrentaram as exigências de sua condição especial são os principais temas desta obra.
Minha inspiração para escrever este livro veio em 1986, quando estive no Brasil pela primeira vez e soube que Roma condenara o frade franciscano Leonardo Boff, famoso teólogo da libertação, a um ano de silêncio devido à sua polêmica crítica ao poder na Igreja. A Igreja brasileira também lamentava, na época, o assassinato do padre Jósimo Morais Tavares, morto em maio de 1986 por ter ajudado os pobres na luta contra os poderosos latifundiários da Amazônia. A descoberta da teologia da libertação e do ativismo clerical renovou minhas raízes católicas. Quando ouvi padres censurarem as iniqüidades sociais durante a primeira campanha eleitoral no Brasil pós-ditadura, pensei comigo: "É isso que a Igreja devia estar fazendo em todo lugar!". A Igreja brasileira contrastava gritantemente com a conformista Igreja americana, cuja atenção se voltava para uma classe média que, acabada a missa, corria para o estacionamento e embarcava em seu carro novo em vez de refletir sobre a renovação de sua vida com Deus. O que presenciei no Brasil levou-me a fazer da Igreja o tema de minha tese de doutorado em história da América Latina, defendida na Universidade da Califórnia em San Diego.
Iniciei minhas pesquisas no Rio de Janeiro em uma tarde amena do inverno de 1987. Fui conhecer um dos mais notáveis clérigos brasileiros, o padre Marcello de Carvalho Azevedo, intelectual jesuíta cujo influente livro sobre a fé, a cultura e as renomadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) acabara de ser publicado em inglês. As CEBs emergiram na década de 1970, quando a Igreja lutava pelo fim da ditadura militar no Brasil. O padre Marcello recebeu-me com seu largo sorriso característico e, em cerca de uma hora, sem consultar anotações, esboçou verbalmente quatro possíveis temas para uma tese. Um deles, a formação de padres em seminários diocesanos, não fora estudado sistematicamente por nenhum historiador ou cientista social. "Você pode-rá prestar um grande serviço à Igreja brasileira se fizer um estudo sobre os seminários", ele me disse.
O padre Marcello acolheu-me em seu escritório no bairro de Botafogo, um dos mais interessantes microcosmos da vida brasileira moderna. Não muito distante do centro do Rio, Botafogo abrigava uma das maiores concentrações da intelectualidade latino-americana. O padre Marcello e outros pensadores influentes da Igreja progressista trabalhavam no Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES). Essa instituição era composta por um influente grupo jesuíta de estudos interdisciplinares que formara toda uma geração de militantes católicos. Em 1970 agentes do regime militar haviam invadido o IBRADES, um ato que quase levou à ruptura da histórica relação entre Igreja e Estado. A poucos passos situava-se o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, onde pesquisadores chefiados pelo ex-militante católico Herbert de Souza (Betinho) organizaram um movimento nacional de combate à pobreza na década de 1990. Após as apresentações formais, o padre Marcello e eu fizemos uma rápida caminhada pela rua São Clemente. Outrora ornada com elegantes residências da nobreza imperial brasileira do século XIX, época em que Botafogo era uma idílica periferia da cidade, essa rua hoje fervilha de carros, pedestres e consumidores, muitos deles moradores de prédios. A alguns metros na mesma rua encontramos o centro cultural conhecido como Casa de Rui Barbosa, onde morara o grande jurista, acadêmico, estadista e abolicionista brasileiro. Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo mundialmente renomado e presidente do Brasil de 1995 a 2003, cresceu em Botafogo. O padre Marcello indicou-me o Colégio Santo Inácio, escola preparatória jesuíta que educou muitos membros da elite masculina do Brasil.Mais à frente encontrava-se o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), fundado por Candido Mendes, o brilhante bisneto do senador que defendeu a Igreja contra a intrusão do Estado na década de 1870. O IUPERJ localizava-se no centro de Botafogo, na rua da Matriz, que liga a São Clemente a outra principal via do bairro. Uma igreja de pedra assoma impassível no fim da rua da Matriz, e quem se vira para o lado da São Clemente vê os morros e o Corcovado, onde a estátua do Cristo Redentor abre os braços num gesto benevolente mas distante para o povo do Rio.
A vida sofre drástica mudança na encosta do morro, precariamente ocupado pela favela Dona Marta. A comunidade, que seus moradores chamam de Santa Marta, nome cunhado por um padre jesuíta, ganhou na década de 1980 em todo o país a péssima reputação de ser um antro dos narcotraficantes e seus capangas. Em 1996 tornou-se um símbolo da violência e das tensões entre o Primeiro e o Terceiro Mundo quando o cantor Michael Jackson e o produtor de cinema Spike Lee filmaram no local um polêmico videoclipe. Alguns políticos brasileiros opuseram-se às filmagens, e Lee teve de pagar ao chefão do tráfico para poder trabalhar em segurança. Nesse mesmo ano o diretor brasileiro Murilo Salles fez um aclamado e trágico filme baseado nas crianças dessa favela, intitulado Como nascem os anjos. Aliando o refinamento cosmopolita à luta de classes, Botafogo e Santa Marta refletem as contradições do subdesenvolvimento pós-moderno.
O padre Marcello atribuiu essa situação à opressão estrangeira. Apontou para os ônibus barulhentos que subiam a São Clemente arrotando diesel poluente. A classe média evitava andar neles. Não passavam de caminhões de transporte adaptados, com bancos desconfortáveis e uma catraca rudimentar e ruidosa. Pareciam destinar-se ao transporte de animais. Os moradores da Santa Marta resignavam-se a passar a vida viajando naqueles veículos de casa para o trabalho. "Veja o que as multinacionais fazem aqui no Brasil", disse o padre Marcello. "Deixam sua pior tecnologia para os países pobres."
Nosso encontro resolveu algumas de minhas questões principais. O padre Marcello não só me ajudou a tomar uma decisão fundamental para minha carreira, mas, além disso, me incumbiu de uma importante missão. No Brasil a Igreja realmente era importante e, a julgar por indivíduos como o padre Marcello, parecia verdadeiramente se preocupar com o povo.Meu trabalho seria muito mais do que um exercício acadêmico. Eu me aventuraria pela fé, pela política e pela luta em prol da mudança social.
Mas um estudo dos seminários teria de abordar mais do que as preocupações predominantemente políticas expressas na maioria dos textos sobre a Igreja católica latino-americana contemporânea. Em meu contato com o padre Marcello eu já observara que a vida do clero brasileiro envolvia demandas complexas e às vezes contraditórias. Por exemplo, ele pertencia ao clero religioso (ou regular). Esses padres são agrupados em ordens, podem servir em qualquer parte do mundo e atuam subordinados a um bispo apenas se servirem formalmente em uma diocese, a principal divisão territorial da Igreja. No entanto, o padre Marcello recomendou que eu estudasse os padres diocesanos (ou seculares), que geralmente passam toda a carreira subordinados ao bispo local. De início, decidi concentrar-me apenas na formação dos padres diocesanos. Mas no Brasil os jesuítas e outras ordens haviam assumido boa parte da responsabilidade pela formação dos padres diocesanos. Surgiram rivalidades entre os padres religiosos e seculares, e também entre as várias ordens que vieram da Europa para o Brasil. Em especial, emergiram tensões em torno das linhas de identidade nacional. Por isso, meu estudo expandiu-se para incluir uma pesquisa sobre os religiosos. Foi além dos seminários e buscou uma visão geral do clero e de outros temas, como a religião popular e a estrutura da Igreja institucional. Embora a princípio eu pensasse em analisar apenas o período pós-Segunda Guerra Mundial, logo ficou claro que não seria possível explicar os seminários sem retornar à era colonial.
As dificuldades dos padres com o celibato tornaram-se parte inevitável de minhas pesquisas. Descobri o lado pessoal das coisas quando procurava pelo núcleo da teologia da libertação entre os padres militantes da Baixada Fluminense, o tórrido e apinhado complexo de subúrbios operários do Rio de Janeiro. Escrevendo sobre esses homens, e às vezes até ajudando-os, vi como eles mergulharam nas disputas políticas do novo regime democrático brasileiro e por isso foram vitimados pela opressão de burocratas da Igreja, ameaçaram o conforto pecuniário de seus inimigos clericais e contestaram o modelo clássico de sacerdócio.
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UM LANÇAMENTO DA
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