quarta-feira, 22 de abril de 2015

ENSAIOS DE MYRTHA RAC'Z - 1 LITERATURA POLICIAL

LITERATURA POLICIAL

UM TIRO NO PEDANTISMO INTELECTUAL




"Não há nada que antes não tenha sido outra coisa, pensava Mma Ramotswe."
(personagem de Alexander McCall Smith,
a única mulher detetive particular em toda Botsuana)


Antes que alguém já saia torcendo o nariz para o tema, mais nos compensa repensar o quanto esse crime compensa. Se para alguns de nossos intelectuais os romances policiais estariam fadados a carregar eternamente o rótulo de subliteratura, para a maioria de intelectuais e escritores, tal colocação não passa de claro preconceito criado a partir de uma outra grande distorção - a de que toda a literatura que envolve crime e mistério é de baixa qualidade. A verdade é que tais intelectuais vivem de dar tiros no próprio pé, e esquecem que muitos de nossos autores clássicos produziram seus contos e romances de mistério, de inconteste qualidade e importância. São livros recheados com todos os elementos execrados pelos tão exigentes detratores. Nas tramas, o crime, os processos, as deduções e as investigações.

Não é preciso ter tanta acuidade de detetive para lembrar de Emile Zola que nos brindou com obras como "Tereza Raquim", "Germinal" e a "Besta Humana" que, certa feita, escreveu que "toda a obra de arte é um pedaço da natureza, visto através de um temperamento". Dessa forma, os elementos policialescos e os crimes em si, fazem parte de nosso dia-a-dia, uma realidade que, nem por ser trágica e incluir muitas vezes elementos repugnantes, deve ser ignorada pelo artista. Talvez seja por isso mesmo que no início do século passado, Enrico Ferri, psicólogo e criminalista, professor da Universidade de Roma e de Bruxelas, afirmou que "Besta Humana" e ainda "Crime e Castigo", de Dostoievsky eram, para a psicopatologia e para a antropologia criminal, "um meio de propaganda, mil vezes mas rápido que a observação estritamente erudita". Citando aqui Dostoievsky, lembramos que no universo da literatura russa, temos Leon Tolstoi que além de romances perfeitos como Anna Karenina e Guerra e Paz, escreveu contos de fina ironia e sátira onde a figura da lei era colocada em cheque. Basta conferir "O Custo Da Justiça".

LITERATURA POLICIAL
ONDE ENCONTRAR


Nas boas casas e livros do ramo, e mais aqui e ali e vez por outra tanta no acolá. Pode ser encontrada de diversas formas e, dificilmente, um leitor pode correr o risco de dizer que nunca leu esse tipo de livro. Segundo o escritor Ignácio de Loyola Brandão, o gênero policial pode ser encontrado até na Bíblia. Basta ler Caim e Abel. "Gosto e leio muitas histórias policiais e acho que, como todo o gênero, tem produções boas e más. Mas é um estilo extremamente fascinante e muito importante na formação de um escritor, pois com os bons policiais você aprende muito em relação à arte da narrativa. Na verdade, o que existe é um grande preconceito por parte dos falsos intelectuais que se postam contra a literatura policial. Meus autores prediletos no gênero são George Simenon, Raymond Chandler, Patrícia Highsmith e Agatha Christie”.

A Ediouro lançou um “catatau” especialíssimo organizado por Flávio Moreira da Costa - "Os 100 melhores contos de crime e mistério". Jornalista desde os 15 anos, o gaúcho Flávio Moreira da Costa foi crítico de cinema, música e literatura. Redator, editor e tradutor, tem hoje cerca de 30 livros publicados. Segundo ele , "o homem é o único animal que mata seu semelhante por razões que não sejam sua própria sobrevivência". Temos aqui uma ficção que beira a realidade, tratando de um assunto por demais comentado em nossos dias, sobretudo devido à crescente globalização do crime. Os textos registram uma faceta da humanidade sempre presente e cada vez mais visível e ameaçadora. A antologia, organizada com brilhantismo, pode ser considerada a mais completa da literatura de crime e mistério até hoje publicada no país. A primeira história da coletânea é do Antigo Testamento - A história de Sansão, depois passamos por Sófocles - Édipo Rei. Mil e uma noites, Perrault, Voltaire, Honoré de Balzac, Robert Louis Stevenson, Apollinaire, Guy de Maupassant, Kafka, Dickens, Edgard Allan Poe...

UM REINADO DE RAINHAS E DETETIVES

Agatha Christie é certamente a mais conhecida escritora de romances policiais. É chamada de a Rainha do Crime, mas o que na verdade intriga a muitos é como uma mulher, saída da era vitoriana,conseguiu criar tramas e enredos tão verossímeis, e ao mesmo tempo, construir histórias passíveis de serem consideradas crimes perfeitos. Com seus mais de 80 livros publicados, incluindo romances, contos, peças e até obras a quatro mãos, ela é uma das autoras mais traduzidas em todo o mundo e o maior sucesso do teatro inglês depois de Shakespeare. Durante um certo período de sua carreira, tentando livrar-se do rótulo de escritora de livros policiais e indo de encontro aos seus críticos ferrenhos que a acusavam de reles comerciante, Agatha escreveu uma série de romances utilizando-se do pseudônimo literário de Mary Westmacott. Mas, mesmo assim, não conseguiu evitar de permear essas histórias com certa dose de suspense. Por certo não figuram na obra Hercule Poirot ou Miss Marple, seus mais famosos detetives. Mas, com certeza, foi Dame Agatha que abriu as portas para várias outras escritoras de mistério.

Mulheres como P. D. James, na verdade Phyllis Doroty James, que nasceu em Oxford, Inglaterra, em 1920. Trabalhou no Serviço Nacional de Saúde, no Serviço de Ciência Forense e no Departamento de Lei Criminal, onde aprendeu "coisas úteis" para seus livros. Iniciou sua carreira literária aos 42 anos, com a publicação de "Over her face", seguido por mais treze romances que consolidaram sua reputação como uma das principais escritoras de livros policiais da atualidade. Em 1991, recebeu da rainha Elizabeth o título de Baronesa James of Holland Park. Seu mais recente livro, relançado no Brasil pela Cia das Letras é "A morte de um perito".

Mas outras mulheres passaram a dominar a cena. Mulheres fortes e decididas como Patrícia Highsmith, que com o seu talentoso Mr. Ripley subverteu a idéia do criminoso ser sempre capturado. Ou ainda escritoras cuidadosas como Mary Higgins Clark (publicada pela Record) com tramas urdidas como um bom tricot. E ainda mulheres exóticas, de lugares distantes como a Nova Zelândia, a senhora Ngaio Marsh. A lista é intensa e imensa - Sara Paretsky, (Ed.Rocco), Ruth Rendell (Ed.Rocco), Lyza Cody,l Lillian O’Donnell, Patrícia Cornwell (Cia das Letras), ou ainda Antonia Fraser que além de ser autora de romances policiais é historiadora e muitas outras mais.


COMO CRIAR UM DETETIVE



O primeiro detetive criado para compor a estrutura do romance policial foi obra e graça de Edgard Allan Poe. Sem dúvida, é ele o criador da moderna literatura policial. Americano de Boston (Massachusetts) que, a priori, deveria também ser o mais belo exemplo de conservadorismo, Poe, além de alcoólatra era um gênio pouco compreendido. Nascido em 1809, é um dos escritores de suspense e terror que teve a vida mais conturbada, morrendo na mais completa miséria e degradação, vitima da bebida, em 1849, após vários dias de impressionante delírio. Os que acompanharam sua agonia disseram que suas últimas palavras foram – “Senhor, ajudai minha pobre alma”. Algo digno para qualquer personagem do gênero. Seu maior divulgador post-mortem foi Charles Baudelaire, que o via como a “cristalização da genialidade e do delírio humano”.

A importância de Edgard Allan Poe pode ser medida na proporção direta de sua popularização, de quadrinizações a centenas de filmes baseados ou livremente inspirados em seus contos e poemas. “Os Crimes da Rua Morgue” é, com certeza, a pedra angular de sua obra e da criação da figura do detetive. É nessa novela que aparece o personagem Dupin, um policial que “gostava de exercitar sua capacidade analítica”.

Frente a um gancho como esse, era óbvio que outros seguiriam essa seara. Vai daí que surge um inglês também dado ao fantástico e que tinha tudo para ser outro escritor conservador. Sir Arthur Conan Doyle certa feita tomou a decisão de “construir uma obra imortal” e assim, sem dó ou razão, assassinou seu personagem e a sua galinha dos ovos de ouro. Matando Sherlock Holmes pensou em livrar-se da maldição de ter criado tão sedutor personagem, com o qual não gostaria de ser lembrado. Foram apenas nove volumes, mas que ofuscaram para sempre qualquer outra tentativa de projetar-se com uma “obra mais séria”. Chegou a pedir um valor proibitivo para um editor usando como pretesto não retomar o personagem, e mesmo assim, teve de ressuscita-lo, algo até simples para quem começava a tomar gosto pelo então chamado “espiritismo”. O herói da Baker Street era, definitivamente, um espectro em sua vida, assim como seu fiel escudeiro o Dr. Watson.

Mas nem só de detetives afáveis e dândis vive a literatura policial. Chesterton, por exemplo, tradicional pensador católico, frasista incorrigível, criou padre Brown. Inglês, como outros tantos escritores de mistério, tem a seu favor ter criado a figura de um detetive de características singulares. O padre Brown é a própria irreverência de G.K.Chesterton que criando esse tipo de anti-detetive, talvez a principio só para satirizar os outros romances policiais acaba por transforma-lo em sucesso. Com padre Brown, a pureza e a simplicidade são amparadas pela sua fé católica que se contrapõem à necessidade dos já famosos raciocínios dedutivos e científicismos quase irreais.

Mas os judeus acabaram por também ganhar seu personagem. Harry Kemelman, da Nova Inglaterra, integrou os costumes judaicos ao romance policial. Em seus livros não há a violência explícita, só a constatação de seus estragos, não há devassidão, mas entrega ao amor e o respeito entre as pessoas. E por fim, existem os originalíssimos caminhos e métodos investigativos do rabino David Small. A Cia das Letras publicou no Brasil quatro livros com o personagem.

Outros detetives são pouco dados a sutilezas. Em contraste com o belga Poirot, só mesmo o francês Maigret. Criação genial de Georges Simenon (que também produziu romances não policiais e sem o seu mais famoso personagem), Maigret tem como linha do humor suas idiossincrasias. Não violento, quando não está tentando resolver os intrincados casos está em sua casa, no Boulevard Richard Lenoir, fumando cachimbo, um dos muitos de sua coleção, ou bebericando um beaujolais. Em tempo, ele adora gerânios.

Outro estranho personagem é o Nero Wolf, o gordo detetive que resolve seus problemas sem nunca sair de sua casa. O personagem de Rex Stout é um tanto bizarro, trabalha por dinheiro e tem uma grande legião de fãs. O romance noir também nos deu Sam Spade, os detetives dos escritórios obscuros, que dão tapa na cara de mulher, bebem Bourbon e fumam como loucos. Raymond Chandler e Dashiel Hammet (do Falcão Maltês, lembram?) são os mais soturnos criadores desse estilo.

Outro inglês, mais precisamente um londrino, que tinha uma legião de defensores, mesmo com seu estilo pouco cordato era Edgard Wallace. Traduzido para mais de 15 idiomas, escreveu cerca de 150 novelas em 27 anos. Em certa época, um em cada quatro livros ingleses vendidos era de sua autoria. Talvez acabe sendo somente lembrado por uma obra que nada tem de detetivesca – “King Kong”. Edgard Wallace morreu em 1932, em Hollywood, de pneumonia dupla, mas até hoje seus livros continuam sendo reeditados. Conta-se que Edgard Wallace ditou de uma vez uma novela completa entre a noite de uma sexta-feira e a manhã do domingo.

PROLÍFICOS


Em meio a essas extensas obras, muitos acabam por desconfiar da prolificidade. Nos socorremos então da nossa mais importante escritora, Lygia Fagundes Telles, que também figura na galeria do livro de Flavio Moreira Costa com o conto “As Formigas” . Lygia é categórica em afirmar que “não existem gêneros menores na literatura. O que existem são escritores menores”.

Para Lygia, a literatura policial é tão importante quanto a do gênero mágico, intimista ou fantástico – “ são importantes na medida em que os escritores também o são. Os maiores escritores do mundo já trataram, de uma forma ou outra, de temas policiais.” Lygia vai longe e salienta que, “ na literatura policial, exige-se uma série de qualidades do escritor, que são indispensáveis. Esse tipo de literatura revela muito da grandeza do escritor, pois é nítido detectar-se se o autor é ou não um bom escritor”. Essa literatura difere da fantástica “pela primeira explicar os fatos e a segunda parar em suas fronteiras”.

É curioso constatar que no Brasil é preciso relembrar incisivamente nossos escritores que usaram algo no tema. Além de Lygia, precisamos destacar Machado de Assis (A Cartomante), Antonio de Alcântara Machado (Amor e Sangue), Aníbal Machado (A Morte da Porta Bandeira), o nosso querido Loyola, e ainda Monteiro Lobato (O Estigma), Marcos Rey, agora relançado pela Cia das Letras. Não dá para deixar de fora Rubem Fonseca e o seu “O Cobrador” ou ainda os novos como Tony Belloto e seu “Belline e a Esfinge”. No final da década de setenta, tempos difíceis de repressão, os brasileiros reuniram-se em uma coletânea policial intitulada muito apropriadamente de “Chame o Ladrão”. Outro brasileiro que está sendo reeditado é Paulo Corrêa Lopes.

Certa feita, conversando com o então só escritor e não político Fernando Gabeira, ele disse-me que “sob todos os aspectos, tão importante quanto qualquer outro gênero, na medida que é a continuidade popular de clássicos como “Crime e Castigo” ou ainda tragédias gregas”. Falou que a discussão sobre a qualidade de uma obra de literatura policial é “uma discussão muito parecida se uma língua é ou não um dialeto. A questão depende do poder de quem está definindo a coisa. A literatura policial pode ser uma denúncia e uma crítica da sociedade, uma visão tão crítica quanto a literatura política o é. Quando uma peça como A Ratoeira, de Agatha Christie, fica 20, 30 anos em cartaz, é um fenômeno que está merecendo um estudo mais profundo.”


E MUITOS OUTROS CRIMES


A Editora Record, por exemplo, publicou a sua Coleção Negra, com textos de romance noir. Um dos destaques é o livro “A Última Dança” de Ed McBain sobre quem a Publishers Weekly escreveu o seguinte – “McBain é tão bom que deveria ser preso por isso”. Outro livro fantástico é o de Alexander McCall Smith, nascido no Zimbábue, professor em Botsuana e que hoje leciona na Universidade de Edimburgo - Escócia. O livro tem o título “Agência Nº1 de Mulheres Detetives” (Cia das Letras) e conta a história de uma detetive mulher na pequena cidade de Gaborone, Botsuana. No mínimo instigante. Denis Lehane é outro destaque da mesma editora, é dele “Apelo às Trevas” e o sucesso “De Meninos e Lobos”, já filmado por Clint Eastwood. Ainda na Coleção Negra, vale destacar o noir europeu de Andréa Camilleri (O Cheiro da Noite), ainda Michael Conelly (Mais Escuro que a noite), Walter Mosley e o admirável “Uma Volta com o Cachorro”. Fechando o noir americano a coletânea “Mistério à Americana”.

Curioso é ainda o livro de Mark Bowden (Editora Landscape) – “Achado não é roubado” que conta a história do homem que encontrou um milhão de dólares. Para esse, o crime o compensaria, e muito. Sendo assim, dizer que o crime compensa não é uma afirmação leviana. Compensa sim, e não apenas para os ladrões de colarinho branco nesse nosso país de impunidades. São muitos os escritores policiais pelo mundo vivendo de direitos autorais. Talvez não no Brasil, como bem sabemos. Raro é o crime compensar para os personagens desses mesmos autores, pois eles sempre terão pela frente um Poirot ou um Maigret, que ao contrário dos nossos “sherloques” não aceitará propina. Requintados ou grotescos esses policiais nos crimes da literatura são sempre melhores que os da vida real de qualquer país. Ou mais virulentos em um estilo pouco politicamente correto, o certo que na grande maioria das vezes, ao menos na literatura, o criminoso sempre leva a pior!

Resta a minha boa intenção de solucionar esse caso sobre a importância da literatura policial e socorro-me do mestre Edgard Allan Poe – “Depois de ter ouvido o que recentemente ouvi, seria por certo estranho que eu permanecesse em silêncio a respeito do que tanto vi como ouvi já faz tempo. (in O Mistério de Maria Roget)


Myrtha Ratis
Jornalista





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