VALE/SERRA
(Para Eduardo Venera dos Santos
Filho)
Outubro findou, era o segundo dia de novembro, dia dos mortos,
quando, num sol claro de fim de madrugada, tomei o ônibus com o qual venceria a
serra ainda completamente desconhecida. Usava pela primeira vez uma batinha cor
de rosa de xadrez florido e levava junto minha manta vermelha de linha
trabalhada (...) e que serviria para me proteger de algum eventual frio que
houvesse no planalto, o que parecia inconcebível na manhã de calor que fazia no
vale, e dentro da alma cantava um rouxinol dourado.
Normalmente, qualquer ônibus serve de soporífero para mim, mas
passei a manhã inteirinha completamente desperta. Vi cada nuvem que correu pelo
céu, cada pedacinho de relva dos barrancos da beira do asfalto, cada ponta de
morro envolta em brumas, todas as casas, todas as pedras, todas as curvas do
rio, todas as cidadezinhas e todos os campanários. (...) Pela metade da manhã o
nosso rio foi ficando cada vez mais estreito, sempre menor, e em algum ponto da
estrada, desapareceu. Mas o vale ainda seguia adiante e era um festival de
campos de arroz nascente e dos verdes mais lindos e suaves que possam ser
imaginados, e eu amei toda a beleza do arroz nascente
(...).
A subida da serra escondeu os campos de arroz e, num lugar já muito
alto, numa curva de poema, fez-se presente ante os olhos toda a extensão do
vale, até tão longe que a gente chegava a imaginar que o azul claro e diluído
que se via nos confins do horizonte já deveria ser o mar. Sei que você era
apaixonado pela vista proporcionada por aquela curva, e que se quedava a
admirá-la em todas as vezes que passava por ali. E foi naquele lugar que pela
última vez você olhou para o nosso vale, para o vale que lhe servira de berço e
que você amava com uma força selvagem(...).
Mas era o segundo dia de novembro, dia dos mortos, e eu corria de
encontro à vida (...)
02 de Novembro de 1972.
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutora em
Geografia.
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