sábado, 26 de julho de 2014

Primeiro autor russo a participar da FLIP lança obra inédita no Brasil










Dostoiévski-trip

Vladímir Sorókin


Dostoiévski-trip é uma excelente introdução ao universo de Vladímir Sorókin, um dos nomes mais importantes - e radicais - da literatura russa contemporânea. Na peça, um grupo de sete junkies aguarda a chegada de um traficante com os últimos "lançamentos" do mercado. No caso, as drogas correspondem aos grandes (e às vezes médios) autores da prosa mundial. Ao ingerirem uma dose de Dostoiévski, os personagens são transportados para uma famosa cena do romance O idiota, à qual se segue uma impressionante bad-trip final - lírica, visceral e catártica.

Sorókin é um dos autores confirmados para a Flip 2014.

Em um lugar indefinido, cinco homens e duas mulheres aguardam ansiosos a chegada de um incerto vendedor. Enquanto isso, conversam, discutem e até brigam acerca de grandes nomes da literatura mundial (Kafka, Púchkin, Céline...) e seus supostos efeitos nos leitores-consumidores.

Não se trata, porém, de uma tertúlia amistosa entre amantes das letras, e sim de um bando de junkies que mal se conhecem, unidos apenas pela condição de viciados em literatura, todos ávidos pela próxima dose.

Nesta peça em um ato, que se lê como um romance ou novela curta, Vladímir Sorókin, um dos nomes mais importantes - e radicais - da literatura russa atual, lança personagens e leitores em uma jornada tensa e intensa pelo universo de Dostoiévski, de seus dilemas filosóficos e existenciais, que ele aprofunda, potencializa, transcende e transporta para as formas do mundo e da literatura contemporânea.
Lírico e pornográfico, escatológico e sublime, divertido e visceral, Dostoiévski-trip bate forte e tem efeito prolongado. Mas aqui não há lugar para cautela ou moderação.

Boa viagem.

Sobre o autor_ Vladímir Sorókin nasceu em 1955, na cidade de Bykovo, perto de Moscou, e em 1977 graduou-se como engenheiro. Ainda nos anos 1970 participou de diversas exposições de arte e trabalhou como desenhista e ilustrador. Sua atividade como escritor se desenvolveu no mundo moscovita underground da década de 1980, e em 1985 seu romance A fila foi publicado na França. Os textos de Sorókin foram banidos durante o regime soviético, e somente em 1992 foi lançada em seu país uma edição de seus Contos escolhidos. Nas últimas décadas, escreveu, além de peças, como Dostoiévski-trip (1997), vários romances, entre eles O dia do oprítchnik (2006) e a trilogia Gelo (2002), O caminho de Bro (2004) e 23000 (2005). Manteve sempre um tom crítico em relação ao atual regime político da Rússia, e seus livros estão hoje traduzidos para mais de vinte idiomas.

Sobre a tradutora_ Arlete Cavaliere, nascida em São Paulo, é professora titular de Teatro, Arte e Cultura Russa no curso de Graduação e Pós-Graduação no Departamento de Letras Orientais da FFLCH-USP, e coordenadora da área de Língua e Literatura Russa no mesmo departamento. Dentre seus livros, destacam-se: O nariz & A terrível vingança (de N. V. Gógol) - A magia das máscaras (Edusp, 1990, tradução e ensaio); O inspetor geral de Gógol/Meyerhold: um espetáculo síntese (Perspectiva, 1996); Ivánov, de A. P. Tchekhov (Edusp, 1998, cotradutora), Teatro russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco (Humanitas, 2009), Nikolai Gógol: teatro completo (Editora 34, 2009, organização e tradução) e O mistério-bufo, de Vladímir Maiakóvski (Editora 34, 2012, tradução).

Texto de orelha_
por Bruno Barretto Gomide

Sete personagens desprovidos de nomes e em busca de um autor se reúnem em um "lugar" inespecífico. O autor, no caso, será trazido por um traficante, cuja maleta contém uma plêiade de escritores em forma de pílulas. Diante das possibilidades entorpecentes da tradição literária universal acondicionada em frascos, os ansiosos usuários discutem o preço caríssimo de Nabókov, as qualidades de Kharms ("com ele, tudo cai bem"), o baixo-astral causado por Górki ("uma merda"), o barato dado por Faulkner e a relação custo-benefício de Chólokhov, Soljenítsin e Platónov, até se decidirem por uma sugestão do vendedor. A bola da vez é ninguém menos do que Fiódor Dostoiévski, cuja ingestão transfigurará a experiência dos personagens, retirando-os daquele não-lugar e catapultando-os para um cenário arquirrusso, uma das cenas de escândalo quintessenciais de Dostoiévski: a passagem profundamente teatral de O idiota em que eles, agora encarnados em Gânia, Nastácia Filípovna, Rogójin e demais personagens, travarão a sua disputa pecuniário-metafísica em torno de cem mil rublos e uma lareira. Depois da reencenação (intensificada) daquela passagem capital do romance russo sobrevém uma bad trip monumental, que novamente problematiza as relações entre o texto de 1869 e o contemporâneo. O leitor, nesse processo, é convidado a tecer aproximações e divergências entre as propostas de Dostoiévski e de Sorókin. E se o Cristo reaparecesse na Rússia do século XIX? À pergunta fundamental de O idiota, o matreiro Sorókin parece apor: e se Dostoiévski reaparecesse na Rússia de 1997, ano de publicação dessa peça viajante?

Uma Rússia em que diversos elementos do pós-modernismo são antropofagizados, confundindo-se, inevitavelmente, com o pós-sovietismo (e com o conceito do pós-dramático, como observa, no instigante ensaio do posfácio, a tradutora Arlete Cavaliere). Percebe-se também a marca da "Tchernukha", a estética barra-pesada de inspiração cinematográfica em voga quando da criação de Dostoiévski-trip e com a qual Sorókin dialoga, neste e em outros textos (além de romances e contos, ele é autor de mais de uma dezena de peças e roteiros de cinema). Cenas de bandidagem, prostituição, alcoolismo, violência, sexo e drogas - o lado "negro" da perestroika e o gangsterismo da era Iéltsin representados por meio de bofetadas verbais, pela violência da linguagem sempre latente na literatura russa e sempre abafada pela necessidade de contornar, no czarismo e em tempos soviéticos, censuras políticas e morais.

Longe, porém, de ser um mero jogo de cena chocante, Dostoiévski-trip é um texto literário e dramático complexo, e desempenha um papel importante na empreitada artística do autor. Em artigos e entrevistas, Sorókin tem apontado as possibilidades bastante contraditórias contidas na analogia arte/droga. Uma dessas intervenções na imprensa, aliás, intitula-se "O texto como narcótico", publicada lá se vão mais de vinte anos. É, portanto, um projeto crítico permanente, de feitio radical e sofisticado, que reavalia o papel da intelligentsia e do seu rebento predileto - a literatura russa - nos tempos atuais. "Sou um viciado em literatura, que nem você, mas eu ainda consigo produzir as drogas, coisa que nem todo mundo consegue", afirmou Sorókin em uma entrevista de 2004.

Ótima oportunidade para que o leitor brasileiro aprofunde o seu conhecimento da literatura russa contemporânea, por intermédio de um dos seus melhores expoentes.

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