sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Crônica da Urda

ÁRVORE?

                                               (Para meu primo biólogo, Elias Melo)

                                               O novo prefeito resolveu seguir a lei e transformar em bosque o capinzal na beira do ribeirão. Mata ciliar, coisa prevista, mas que entrava prefeito e saía prefeito e a mata ciliar nunca saía do papel. Saíam das casas e prediozinhos próximos era gente braba, indignada com o capinzal que não pedia licença para crescer, capim branco misturado com capim elefante, uma fartura de erva que daria para alimentar um pequeno rebanho, embora mal e mal parasse ali, vez ou outra, um único homem que cortava braçadas de capim até encher seu carro, e o levava para alimentar um cavalo que tinha em algum lugar, alhures. Aquela colheita de capim, no entanto, passava despercebida, tamanho o vigor vegetal daquela beirada de ribeirão – era como tirar um grão de areia de uma praia.
                                               E a burguesia que morava por ali, incapaz de ver naquele capinzal o lugar dos sonhos para as brincadeiras de qualquer criança, estava sempre a telefonar para a prefeitura com toda a sua empáfia burguesa, falando nos possíveis futuros delinquentes que viriam se esconder ali no capim e botar em risco suas vidinhas de pouco valor, vidinhas atreladas a coisas como o carro do ano ou o tamanho da piscina, quiçá aos tablets dos filhos – havia que cortar, havia que cortar, e por pior que fosse o prefeito, sempre arranjava um jeito de mandar guilhotinar aquele capim todo, premido que era pelas forças da maçonaria que tinha em comum com aquela gente. Vivesse eu ali na beira daquela fartura de capim, e colocaria ali duas boas vacas holandesas, que dariam conta do recado e produziriam leite, manteiga e queijo, quem sabe até para a escolinha da favela próxima – se não conseguisse vacas, algumas cabras fariam o mesmo serviço e supririam a escolinha (e, quem sabe, até a própria burguesia) – mas burguês é gente que sujaria a mão para cuidar de vacas e cabras, ainda mais em tempos de supermercado, quando as pessoas já tinham desaprendido essas coisas de tirar leite e bater manteiga?
                                               Só que o novo prefeito resolveu seguir a lei e plantar a mata ciliar, e o bosque foi projetado e criado. Sisudos engenheiros andaram por ali e mediram e fizeram contas, e numa manhã as mudinhas chegaram, fiapinhos de nada plantados dentro de tubos com um pouquinho de terra dentro de saquinhos de plástico preto, e vieram os operários, decerto especializados naquilo, pois em poucas horas o bosque estava plantado dentro do capinzal tosado, coisa invisível assim a olho nu, mas que eu acreditava que existia porque vira acontecer.
                                               Era janeiro ou fevereiro, faz um ano, tempo quente – será que aquelas mudinhas vingariam? Eu andava por lá na maior torcida, o capim crescendo depressa, escondendo aqueles projetinhos de alguma coisa – será que aquilo daria certo, produziria mesmo um bosque de sombras e raízes profundas, como era a idéia? Ali, trêmulos e parecendo infelizes, os fiapinhos começaram a botar um arremedo de folhinha para fora; depois, fizeram uma folhinha inteira, faziam o que podiam para ter pulmõezinhos que lhes permitisse respirar. Eu espiava cada mudinha daquela a cada dia, até que, numa manhã, aconteceu o mais inesperado de tudo: meu cachorro foi lá, primeiro xeretou, depois cheirou um daqueles fiapos, e dentro dele aconteceu algo de reconhecimento que só cachorros sabem explicar. E então ele levantou a perna e fez xixi no fiapinho. Estava dado o certificado para aquela mudinha: ela era uma árvore!
                                   Faz um ano. Qualquer cachorro pode ir lá, hoje, e fazer xixi em cada uma daquelas que serão, sem dúvida, árvores frondosas daqui a pouco. Vai haver um bosque lindo!

                                               Blumenau, 27 de fevereiro de 2014.

                                               Urda Alice Klueger
                                               Escritora, historiadora e doutora em Geografia pela UFPR.

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