domingo, 1 de fevereiro de 2009

"Cantagonias" da Cantora Maysa






A Mais Triste Voz da Boêmia MPB

Para Everi Carrara

Ela cantava como quem punha tudo em pratos limpos, isto é, ela mesma no contrapeso da balança existencial. Maysa cantava suas dolentes sombras e escuridões, entre pausas e semifusas, pondo a sua insana dor de cotovê-lo pra fora do ser angustiado que era. Maysa cantava com sua voz diferenciada, sua alma triste, a mais triste voz da MPB boêmia por atacado. Maysa era a voz-lamento, numa espécie de banzo-tropical-latino contra muros e cincerros, ela mesma, alma em arrebentação íntima. Mulher bonita, livre, independente, tinha opiniões saradas, remando contra as marés bravas de uma carioca e burguesa sociedade hipócrita, assim, destilou veneno, sangrou-se, lavando a alma, dos porões do inconsciente trazendo revoltas, iras, mais a suprema determinação de ser sempre ela mesma, apesar de tudo que se lhe vinha ou entornava o caldo. Existindo arrastava suas correntes? E cantava como se escorrendo as lágrimas-letrais em música, harmonia e ritmo. Nunca houve nenhuma outra sequer parecida com ela. Maysa era seu próprio repertório datado. Já pensou que dilema? Nos bastidores, na solidão do camarim, um copo de uísque na mão, ninguém sabe a dor de quem se coloca pra fora naquilo que faz, por isso mesmo arrebentava como cantora, artista, mãe, mulher, humagente, e ainda um mundo caído no sensível coração arrebentado.

Num país sem memória para com seus ídolos portentosos, em que a absurda máquina televisiva arrebenta as poucas memórias artístico-culturais ou cria infames núcleos estrambólicos de "nadas e ninguéns" (e algumas oxige-Nadas) batizados com a fama sazonal em vernizes fúteis e luzes falsas, finalmente a Rede Globo vai trazer um levante de sua vida-livro, certamente que um novelo envelopado pra consumo, porque Maysa não era pop, muito menos favorita, talvez até fosse uma louca desvairada que colocava os pingos nos dáblios, se reportando como sobrevivente social nas canções em que extravasava o espírito com tantas inquietações. Cantar era seu remanso.

Porque quando Maysa cantava, todas as rotações transcendentais da vida paravam para ouvi-la. Porque ela punha o exato tom certo, a perfeita respiração certa, o silêncio encorpado, o timbre que rebrilhava na interpretação de humanismo-dor, de ternura-dor, de romantismo-dor. E o ser humano é construído e refeito na dor. Maysa sabia sobreviver cantando. Pedir socorro cantando. Tinha uma tragédia ao veicular a composição com sua personificação lítero-musical-existencial. A ostra não canta a dor em som, mas em estética pérola. Maysa perolizava a música com sua dor quando soava. Porque Maysa cantando se livrava dos fantasmas.

Quem mal a amou, armando-a? Foi isso? Maysa tinha sim, uma cantoria cheia de lágrimas. Era da natureza dela ser a coxia no palco de si. Se fosse escritora, seria Clarice Lispector. Tinha sua cantação lispectoriana. Clarice com sua ficção-angústia, Maysa sua interpretação-angústia como marca, estilo todo próprio de ser e de se defender. E assim compunha a música-composição como se destilasse o labirinto-absinto de suas cantagonias. O que Lupiscínio etilicamente fazia com suas brilhantes composições marcantes, mas cantando, soando, era uma moça, manteiga derretida, voz fina, Maysa cantando era a ferro e fogo e paixão, não impostando a voz-veludo, mas dando a tristice certa no caldo da própria exposição cênica-sonora.

Aqui e ali, na casa de um amigo de grosso quilate, está o long-play da Maysa, a fita-cassete, valendo ouro, como um som-documento de uma voz que se calou a partir de uma tragédia. Uma ponte enorme, ligando continente ao mar, a tirou de nós, como uma metáfora de travessia, desembarque, ilha. Sim, ela bebia, fumava, brigava, amava, odiava, existia, tentando achar seu fio terra, decompor-se muito além das arrebentações da pilha cósmica do universo. Cantar era como se clamasse no deserto. Sua vida-documento testemunha fermentos e purgações de uma mulher fora de seu tempo, moderna e além de tudo ferida para ser livre, incomodar, despertar consciências.

Maysa foi única e foi tantas, múltiplas. Meio Elis, Meio Celly Campello, meio Aracy de Almeida, meio Dolores Duran, meio Nana Caymi, meio Clementina de Jesus, inteiramente personagem de si mesma, alma aberta. Mas seu mundo caiu. E quando mais fina a flor, mais depressa é recolhida. As flores mais bonitas são colhidas primeiro. Você, de alguma maneira, literalmente VIA a agonia naquilo que Maysa cantava, destilando seu vinho-verso-verbo. Há mitos, lendas, verdades, mentiras, invencionices. Mas para saber exatamente quem foi (quem é) Maysa, à beira mar, um chopinho e um luar, arrue uma vitrola de garagem, com aquela bolachão como se tivesse riscado - a agulha do tempo? - e deixe rodar o disco de Maysa. Ouvir Maysa é credenciá-la com testemunho de um tempo e as amarguras femininas desse tempo. Ouça, sinta, capte, depois, diga lá coração, diga pra mim, se a flor-fêmea Maysa não foi muito mais do que as memórias lhe dão crédito? Maysa cantava, como quem cortava os pulsos. Intrépida, louca varrida, poeta, sensível, feminina e romântica, livre com sua solidão-albatroz, num mar de sargaços.

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O ultimo a chorar, por favor, por favor

Apague a luz do abajur cor de carne

Enquanto Maysa canta toda a inesgotável dor

De não amar. E de não viver em paz.

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Silas Correa Leite - Poeta, Compositor, Boêmio, Inventariante de Cenários

Santa Itararé das Letras-SP

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